O PERCURSO DE DANIEL ACOSTA

 

Tadeu Chiarelli

Professor Sênior – Escola de Comunicações
E Artes – Universidade de São Paulo

Em 1992 visitei a exposição do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo. O impacto que me causaram as peças de Daniel Acosta ali exibidas foi tão grande que, passadas poucas horas, sentei-me e produzi a primeira versão do texto que seria publicado neste jornal no final de agosto daquele ano[1]. Na semana seguinte estive em Porto Alegre para participar de um evento. Ali fui abordado por alguém do Zero Hora que me perguntou se eu aceitaria ceder um artigo para o suplemento cultural do jornal. De imediato respondi que sim, acrescentando que já tinha o texto praticamente escrito e que ele tratava do trabalho de um jovem artista gaúcho.

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Registrei esse episódio porque aquele meu contato com a obra de Daniel foi importante para mim, não apenas por ter encontrado um artista cujo trabalho me atingiu esteticamente, mas, sobretudo, porque aquelas obras tornaram-se decisivas para o meu percurso como historiador, crítico e curador. Relendo aquele texto, torna-se claro o impacto que a produção de Daniel me causou, pois ali é impressionante notar como, talvez pela primeira vez, se revela cristalino meu método de análise histórico-crítica.

Mas o que tanto me mobilizou nas peças de Daniel? Objetivamente, elas me incentivaram a ampliar os conceitos de escultura, pintura, de relevo etc., já cristalizados pela tradição moderna. E, na medida em que Daniel introduzia nesse debate de raízes tão formais, um componente semântico – sua experiência de vida numa cidade como Pelotas, com seus ornatos arquitetônicos e seus tapumes encobrindo a destruição do patrimônio – ele colocava nova pertinência à discussão a respeito da fusão de modalidades artísticas tradicionais, reconvocando a sensibilidade do público para pensar as estruturas das artes visuais sob novo ponto de vista.

Produzindo peças entre os conceitos de escultura e pintura, do relevo e da pintura, entre o design e a escultura etc., Daniel dava início ao seu percurso, engajado na exploração dos limites entre o objeto de arte bidimensional e aquele, tridimensional, questão que, no limite, o levaria a borrar as fronteiras entre escultura e arquitetura, arquitetura e design, entre arte e vida[2].

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Foi durante os anos 1990 que teriam sido formulados e começariam a ser desenvolvidos os principais interesses da poética de Daniel. Dentre eles, um que ainda não foi devidamente destacado, diz respeito ao objetivo do artista em operar na interseção entre a escultura e a arquitetura – problema apenas latente durante seu período inicial, mas que mais tarde ganharia forte desenvolvimento e protagonismo em sua obra.

Como já lembrado, os objetos produzidos por Daniel naqueles primeiros anos de sua carreira, se constituíram no embate surdo entre as várias modalidades artísticas. A partir de meados da primeira década deste século, porém, se parte de sua produção continuou a explorar esses atritos, outra irá se projetar francamente para o espaço tridimensional e, nessa projeção, fará com que seu trabalho conduza o tempo para o centro de seu interesse.

Dentro desse lugar em que escultura e arquitetura se embaralham, fundindo a arte na vida, é que se localiza a intervenção que, em 2017, Daniel concebeu para o Octógono da Pinacoteca de São Paulo, “Rotorama: Sistema de Giroreciprocidade” – uma plataforma redonda de madeira, pouco acima do solo, que girava demoradamente sobre o próprio eixo. Sentado, em pé, solitário ou em grupos, o público vivenciava aquela experiência, contemplando o espaço ou trocando ideias sobre os mais diversos assuntos e sentindo-se conduzido a perceber – sob infinitos pontos de vista –, o espaço da Pinacoteca.

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Embutidos, Permeáveis, Topológicos, Rotores – exposição que Daniel apresenta agora em Porto Alegre –, com exceção de algumas peças já “históricas”, reúne trabalhos projetados e/ou produzidos durante a pandemia de Covid-19.

Recolhido, Daniel concebeu obras que, por assim dizer, criam o espaço em que performam, não estando submetidas, portanto, às circunstâncias do entorno. É de se notar, já pelo próprio título da mostra, que ao artista interessa explicitar a constituição de cada uma delas, ressaltando os procedimentos que tornam possível a existência de cada uma.

Se no início de seu percurso profissional, Daniel optou pelo anonimato de seu fazer, enxugando a as formas dos objetos e se utilizando da fórmica, material de forte impessoalidade, nas peças atuais, realizadas em madeira, cimento e outros materiais, vêm à luz explicitamente os processos que lhe deram origem e, assim, nada de “autoral” parece restar ali, nada do “eu” do artista.

Para aprofundar rapidamente esse último aspecto, a dimensão político/pública da sua obra, assim, dá-se não unicamente pela produção de suas esculturas/arquiteturas/mobiliários e instalações (o que, talvez, já fosse o suficiente). Ela também se mostra presente nessa sua postura de não produzir metáforas fáceis sobre a vida e/ou a arte, com palavras de ordem explícitas ou implícitas, subestimando a capacidade cognitiva do público.

Ao visitar esta exposição, vejo o raro privilégio de entrar em contato com os trabalhos novos deste artista que tem se demonstrado um dos mais consistentes de sua geração, apto a produzir um conjunto de obras que se impõe como um verdadeiro manifesto sobre o que é ou sobre o que pode ser a arte hoje em dia.

[1] – CHIARELLI, Tadeu. “Os relevos não-relevos de Daniel Acosta”. Porto Alegre: Segundo Caderno. Zero Hora, 29 de agosto de 1992, p.5

[2] – Voltarei a esta questão ainda neste texto.

Daniel Acosta – Inventor de arquiteturas e paisagens

Agnaldo Farias, 2004

Comecemos pelas fotografias e alguns dos temas em princípio banais que Daniel Acosta vem explorando através delas, vacas no pasto, a paisagem com uma árvore caída, um cogumelo (ou será uma bola de golfe?). Observando-as logo notamos que o que interessa ao artista é menos as imagens que elas apresentam; menos as vacas, a árvore, o cogumelo (mas será mesmo um cogumelo?), mas como essas imagens, na medida em que fogem daquilo a que estamos acostumados, obliteram nossa compreensão; demonstram que a despeito da confiança que depositamos nela, a visão é uma fonte inesgotável de equívocos. Imagens, lembram-nos essas fotografias, são quase tão abstratas quanto as palavras, são construções tão caprichosas que basta que se lhe desloque o ponto de vista, altere sua sintaxe, substitua-se ou apague-se um dos elementos que a compõem para que adquiram um significado inteiramente imprevisto ou ao menos fiquem impregnadas de estranheza. Se cada signo possui uma forma, um corpo, nessa exposição, passando do mais abstrato ao mais concreto, das paisagens às arquiteturas, a proposta de Daniel Acosta é desmontá-los para em seguida rearticula-los, cuidando sempre em deixar os nexos nus, como fraturas expostas.

O resultado é que não há como ficar imune aos efeitos desses jogos sintáticos: diante da fotografia de uma árvore caída no campo, que o artista força a ficar vertical girando o corpo da máquina, fazendo do horizonte uma diagonal íngreme, o espectador entorta seu corpo na vã tentativa de readquirir a domesticidade tranqüila da linha do horizonte.

O ponto nodal da poética de Daniel Acosta reside em problematizar o modo complacente como nos relacionamos com as representações, o que faz de cada um de seus trabalhos – fotografia, desenho, escultura, instalação – uma crítica a memória dessas relações que impregnam nossos músculos e mentes, orienta gestos, limita o espectro da percepção, não deixam perceber que as coisas não se desenredam nas suas aparências, não se esgotam naquilo que se vê de imediato, não são meros fenômenos de superfície.

Em Acosta a crítica à percepção ou, dito de outro modo, o reconhecimento dos cinco sentidos como um produto simultâneo da cultura e da natureza, acontece pela via da demonstração sistemática de que, ao contrário da noção corrente que os resolve como termos irredutíveis, esses dois pólos estão paulatinamente mais e mais indistintos. De fato, se tudo que há provem da natureza, é natureza modificada, o que dizer daquilo que, sendo artificial, esmera-se por parecer natural? O artista é fascinado por plantas de plástico – plantas falsas? não! verdadeiras de plástico -, placas de fórmica simulando veios de madeira, como também é fascinado por um mundo tão repleto de cifras, objetos tão codificados que basta que os desloquemos para um outro lugar para que eles mostrem sua face insubordinada, como é o caso da maca, objeto tão prosaico, mas que, afixado numa das parede do museu, submerge entre as coisas inclassificáveis.

E o que dizer das construções proto-arquitetônicas – quiosques, cabines, banheiros portáteis, caixas rápidos etc. –, o formidável elenco de objetos indecisos entre escultura e arquitetura que invadem paisagens, cidades e até mesmo edifícios? São eles que estão na origem desses híbridos fabricados pelo artista e que ele instala dentro de prédios, no interior de museus e galerias, num processo de ocupação equivalente à dinâmica da vida urbana contemporânea, pautada na alta densidade de pessoas e construções, na coexistência entre termos contrários – arquitetura e paisagem – ou mesmo semelhantes – arquitetura dentro de arquitetura.

A cidade é o lugar fértil de onde proliferam formas que escorrem pelo campo afora. Sob sua lógica a matéria natural se metamorfoseia em matéria artificial que, por sua vez, se espelha no natural, enquanto a coisa se metamorfoseia em signo e o signo em coisa. Com suas materialidades ostensivamente artificiais, a base de plástico, fórmica, cores e luzes industriais, com seus vasos transbordantes de folhagens verdes iridescentes, com seu laguinho/piscininha de bordas sinuosas feito de fórmica azul em tudo semelhante aos desenhos de lagos e piscinas em plantas baixas de arquitetura, Daniel Acosta fabrica suas “paisagens portáteis”. A ironia desprendida por esse título resulta da constatação de que muito embora as construções que o artista parodia serem produzidas por tecnologias sofisticadas, não deixa de ser curioso que elas, ao invés de afirmarem sua artificialidade, terminam por simular a natureza – o ponto de partida delas, como de tudo o que existe -, à maneira da folha de fórmica que simula em desenhos invariáveis os veios da madeira, sua origem negada pelo processamento industrial, ou como o falso e exaltado aroma de pinheiro ou eucalipto, a promessa possível de uma vida “in natura”, que se desprende do líquido denso e amarelo esverdeado do desinfetante com que alimentamos a ilusão de purificar nossos aconchegantes lares burgueses.

Texto publicado originalmente em 2004 por ocasião de exposição individual no Museu de Arte Contemporânea de Goiás.

DANIEL ACOSTA

ESPAÇOS DE INCLUSÃO

José Roca  

Ocupando lugar indefinido entre a arquitetura, o design e a arte, o trabalho de Daniel Acosta (Rio Grande, Brasil, 1965) questiona a proverbial inutilidade desta última. Suas esculturas/recintos/móveis convidam o espectador a um exercício ativo de participação, interação e diálogo.

Acosta invoca uma longa tradição de arquitetura e design, que parte dos postulados modernistas (padronização, uso de materiais industriais, coordenação modular) e ao mesmo tempo escapa deles mediante linhas de fuga, onde o rigor geométrico é incitado a jogar (e é posto em jogo) por meio de formas orgânicas inesperadas. Em muitas de suas obras Acosta faz referências eruditas à história do design moderno; em seu trabalho podem ser vistos ecos de Charles e Ray Eames no uso criativo dos materiais industriais, como a madeira compensada (plywood) de Archigram, na ideia da arquitetura como organismo, de Joe Colombo, na criação de espaços- objeto, ao mesmo tempo móveis em escala arquitetônica e recintos que contém o espectador/usuário, propondo-lhe usos ou atividades múltiplas em seu interior. As referências de Acosta à história do design moderno ajudam a situar seu trabalho numa linha conceitual de corte utópico, onde o design e a arquitetura almejavam ter possibilidades reais de transformação da sociedade. A distância histórica permite que hoje vejamos os limites de tal pretensão. Nesse sentido, a aproximação de Acosta não está isenta de uma atitude crítica: o uso de certos materiais, como a Fórmica, já tem sua carga de anacronismo, vestígios de um passado recente, no qual progresso e tecnologia pareciam caminhar de mãos dadas.

Referindo-se ao seu trabalho, Acosta fala em disponibilidade funcional, no sentido de que, ainda que seus objetos permitam uma interação, não necessariamente a demandam. Muitos destes trabalhos resultam de encomendas, e nesse sentido tentam resolver a partir do design uma situação funcional e espacial específica. São espaços de inclusão, abertos ao público, que incentivam uma utilização não normatizada nem controlada. Muitos desses projetos estão em lugares públicos, com acesso completamente livre. No seu interior é comum que aconteçam conversas entre pessoas que não se conhecem, pois a situação de intimidade estabelece um entorno propício para esse tipo de interação espontânea. Muitas das obras de Acosta são utilizadas para conversar, fumar, ou descansar, e o publico nem sempre tem a certeza de que se trata de uma das obras da exposição ou do mobiliário urbano. Esta ambiguidade não preocupa Acosta; pelo contrário, a situação da peça no espaço público foi essencial, uma vez que no interior do espaço expositivo a obra teria sido lida como escultura e provavelmente sua utilização teria sido mais próxima do ritual próprio da visita de arte (entrar, experimentar, sair) do que do uso que lhe foi dado.

Na presente exposição (individual na Casa Triangulo em 2014) o artista põe em relação dois aspectos paralelos de seu trabalho: o arquitetônico, que se manifesta em estruturas que contêm o espectador ou definem o espaço no qual ele se move, e um aspecto mais claramente escultórico, visível, por exemplo, em seu interesse pelos brinquedos de plástico para crianças. Acosta já tinha trabalhado com os brinquedos da marca Gulliver, muito conhecidos no Brasil, em obras como Mono1mento ao grande Topological (2006), que incluía leões de brinquedo. Freestandingupmonkey (2010), um grande macaco em resina, réplica em escala monumental de um pequeno boneco de plástico, ou Imagens Transportadas (2011), imagens coladas numa camionete que transitavam no espaço público.

Em ambos os casos, o arquitetônico e o escultórico, Acosta identifica “as diferentes experiências de uma natureza artificial, industrial, padronizada, que está presente em nosso cotidiano, seja nos materiais e padrões de madeira (Tektoniks), seja na representação dos animais (brinquedos)”. Tomando como modelo os pequenos animais de brinquedo, Acosta realiza modelos em grande escala, talhados em madeira, mudando por completo a percepção do objeto e sua materialidade ao converter um objeto em série muito popular numa peça única, fina e preciosa. No contexto artificial que referencia o natural, a peça de mobiliário começa a funcionar de forma mais alegórica, transformando-se em jardim que serve de preâmbulo à instalação com os animais.

Acosta é consciente do potencial transformador da arte quando faz o trânsito à esfera do design, cuja incumbência de resolver em termos estéticos uma prioridade funcional necessariamente o aproxima mais do uso por parte das pessoas. Sobre esse assunto, disse Acosta: “Todos estes trabalhos, além de ter uma situação, mais escultórica, ou seja, que apresentam uma visualidade interessante, materiais, estruturação…, também podem ser vistos como pequenas arquiteturas em função de seu uso. A possibilidade de que a gente possa se sentar os aproxima do mobiliário urbano e do design. Estando sentadas, as pessoas podem, entre outras coisas, observar o ambiente à sua volta. Então (estes trabalhos) são como dispositivos que potenciam o ambiente, indicando por contraste, no caso da cidade, os espaços de exclusão”. A arquitetura escultórica de Acosta representa justamente o oposto, estabelecendo espaços de inclusão onde o espectador exerce seu direito cidadão de expressão.