“  ORQUESTRAÇÃO  ‘SAMPLEADA’  “

por Carlos Krauz *

Acompanho a produção artística de Nelson Wilbert desde o início da década de 90. Na ocasião, talvez na metade da década, em algumas pinturas já encontramos imagens de obras de mestres do Renascimento italiano. Elas surgem ora inseridas em uma figura maior, ora fundidas em um padrão formal que nos remete ao refino gráfico de Gustav Klimt (1862-1918). Nesse ponto talvez tenha nascido o que Wilbert denomina hoje ‘espaço compartilhado’, apontando seu olhar parta a historia da arte como modelo e motivador e para a sobreposição como procedimento instaurador da simultaneidade de convivência entre padrões geométricos ou orgânicos.

Um bom caminho para nos familiarizarmos com a produção recente de Nelson Wilbert é entendermos o que significa para ele ‘espaço compartilhado’, já que a presente montagem se dá dentro de um espaço físico compartilhado. “Espaço compartilhado é aquele onde duas ou mais coisas convivem simultaneamente, de modo harmônico ou não. Mas para que essa convivência se efetive preciso chegar a um estado de ‘folha em branco’,  semelhante ao  que acontece com o ator que, para encarnar uma nova personagem ‘esvazia-se de si’. Precisa compartilhar seu todo físico e mental para dar nascimento à personagem”. Para Wilbert o ‘esvaziamento’ permite abrir mão da autoria ou da originalidade da obra ao escolher imagens e não um modelo do mundo real. Essas imagens ‘bebem’ na fonte do passado clássico através de temas épicos, mitológicos ou religiosos. Nas palavras do próprio artista: “olho para dentro; não olho para o real ou para um modelo vivo a minha frente. Eu olho para a história e as estórias que essas imagens contam. Para a maneira como elas foram vistas, descritas ou sentidas”.

Mas de que modo o artista nos apresenta isso ? Sobrepondo detalhes de imagens de obras icônicas a padrões florais ou geométricos. Esse processo, que se inicia dentro de programas de tratamento digital da imagem ao computador, gera múltiplas imagens com variações formais e afinações cromáticas. Dentre esses ensaios o artista escolherá um para a segunda fase, que será a sua transposição para a tela ou papel.

Analisando duas obras que tomam por modelo um detalhe da pintura Leonardo Da Vinci (1452-1519), intitulada ‘La Belle Ferronnière’ vemos, na versão ‘floral’, a transposição da figura feminina que nos olha, atravessada e fundida a uma padronagem vegetal que ora parece originar-se do fundo, ora da própria figura. Ficamos perplexos diante de seu olhar aparentemente cândido e indiferente a um tipo de invasão perpetrada pelo fundo que dissemina-se sobre ela ou, quem sabe, ‘retrata’ seus devaneios.

Na versão denominada ‘sob padrão rígido’, a mesma imagem está pouco precisa. Lança-nos seu olhar entre frestas geométricas. Uma camada estriada que sugere um filtro precário. São quase arranhões sobre a figura evanescente.

E aqui chegamos ao momento crucial no qual Wilbert, ao se encontrar diante da quantidade de imagens geradas e afinadas no computador, escolher aquela que irá projetar sobre o suporte desenhando-a, seguindo os contornos da projeção. Também nessa etapa equaliza as cores projetadas àquelas que prepara na palheta. E, desde a primeira cor ‘copiada’ do écran até a conclusão da obra, as cores serão demoradamente afinadas. Uma cor vibrante aplicada ao lado de outra também vibrante pode perder o seu vigor assim como qualquer alteração num canto da imagem cria uma nova dinâmica e requer novo arranjo.

Ao orquestrar formas e cores nesta etapa o artista se deu conta que estava lidando com um modo operacional  diverso de obras anteriores. Aqui ele passou a perceber que o conceito associado a esse fazer era ‘samplear’, que é um anglicismo provindo do termo “sample’, que significa amostra ou também o ato de coletar. Com isso em mãos o artista coleta, analisa, combina e recombina imagens, padrões e personagens à exaustão, orquestrando formas e cores que lhe possibilitam uma gama infinita de sobreposições/combinações a tal ponto que, ao contemplarmos cada obra, podemos estar diante de uma amostra. De uma possibilidade entre tantas que poderiam estar ali. Entretanto o ‘filtro’ do artista disponibiliza-nos aquela solução permanente mas passageira, pois guarda, em sua semente, a potência para voltar em outra obra talvez camuflada por outro título, operação ou escolha.

Agosto de 2023

Carlos Krauz é artista visual e Mestre em Poéticas Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

IMAGEM METAMÓRFICA

André Severo, dezembro de 2021

Imagem metamórfica: o espaço do sensível é revelado pelo avesso; a imagem é o lugar da metamorfose; a metamorfose é a condição da sobrevivência; a sobrevivência é o imperativo da transmissão – e a transmissão é a finalidade da travessia (travessia no espaço, travessia no tempo). Virtude sublime da ação ou do efeito de apropriar-se, de tomar para si, de se apossar – imaterialmente – de algo (e, portanto, também de gerar transferência, alienação), o sensível que se transforma, que sobrevive, que se faz transmissível – após ter sido também transmitido –, que realiza a (e se realiza na) travessia espacial e temporal, não possui apenas o condão de propagar algo daquilo que recebe (e de que se apropria em termos de forma ou conteúdo), mas também o de atualizar a depreensão de seu referente. Ao transformar e ser transformado pela apropriação, a imagem torna-se capaz de estender a forma que lhe possibilitou existência: relação, proximidade, adjacência. Ao que se afigura, o sensível possui o atributo especial – ou o poder sobrenatural – de tornar-se apropriável de um modo não exaurível; de instaurar a apropriação como um estado de sobrevivência da criação – sendo a imagem, em última instância, aquilo que permite ao artista realizar a possessão de algo sem esgotar (sem nem mesmo transformar) o objeto com o qual estabeleceu relação de contiguidade. Imaginar é se deixar atravessar e permitir que os resultados desse atravessamento sejam transmitidos; se faz assim, através da imagem, no domínio do sensível, a possibilidade de metamorfose, de travessia do lugar estreito onde estamos incorporados: a passagem daqui onde nosso corpo está ancorado – e de onde ele não pode desarraigar-se – para ali, um local de desdobramento espacial no qual o tecido do tempo, distendido, se rompe em estilhaços invisíveis e é afastado, sob nossos olhos, para além do alcance de nossos sentidos. De fato, a imagem não é algo que acontece somente no espaço; mas sim algo que acontece também no tempo – o sensível é, precisamente, o duplicamento do espaço pelo tempo: a imagem bifacial, multiplicada pelo plural, sob nossos olhos, exibida três vezes, seis vezes, nove vezes, mil vezes, infinitas vezes… O outro espaço não é outro, a outra imagem não é outra, o que aconteceu segue sempre acontecendo; no sensível o tempo é desviado e está, ao mesmo tempo, presente e aberto. Nenhum além, nenhum ilógico, nenhuma inconsistência, nenhum surreal; somente o tempo diante de nós, aberto e multiplicado por um outro tempo, um tempo-espaço declinado, um espaço-tempo desdobrado. A dimensão temporal do sensível não se instaura para acompanhar o espaço, para configurar paralelo, medir duração ou harmonizar estações – mas para atravessá-lo, baralhá-lo, torná-lo essencialmente reversível, fazer passar através, transmitir a si mesmo (e ao outro) a sobrevivência em outra(s) forma(s): Imagem metamórfica.

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SOBRE A POÉTICA DO ARTISTA

Paulo Gomes, 2016 [Artista plástico, professor e pesquisador junto ao Instituto de Artes da UFRGS]

Os caminhos para a reflexão sobre a poética de um artista podem ser o da análise crítica dos meios utilizados e dos fins almejados por sua obra ou o da imersão no seu universo criador. A este denominamos poética, ou seja: conjunto da produção do artista, e inclui seu universo mental e material. É sobre ele que se debruçam historiadores, teóricos e críticos de arte. Se a poética ocupa-se dos meios materiais, da obra acabada, a poiética, por sua vez, ocupa-se do processo. Trata-se de priorizar o olhar sobre o criador, o artista, aquele que não é mais sensível do que qualquer outro ser humano, mas tem a diferença de passar do pensamento ao ato, ocupando-se dos movimentos dinâmicos, voluntários e involuntários que o ligam à obra em execução. [1]

Vivemos em um tempo no qual predomina o pensamento criador como atividade que prescinde do artesanato artístico (lembremos que A Fonte, de Marcel Duchamp, completa cem anos em 2017); em uma época na qual os artistas têm a autoridade de definir e impor o que é arte, independente de sua qualificação técnico-formal. Aqueles artistas que criam a partir da manualidade, sejam pintores, gravadores, desenhistas e escultores, entre outros, permanecem como autores que, aparentemente, recusam os discursos. Nesses, a excelência da invenção, a superioridade da forma, a precisa adequação entre ambas na busca da melhor expressão são qualidades que precisam ser destacadas, não pelo elogio óbvio do domínio do métier, mas porque esses artistas, que passam discretamente pelo seu tempo, mantêm viva a longa tradição da arte ocidental e a atualizam diariamente para os seus contemporâneos. Suas obras continuam a ecoar e a reverberar as atividades artísticas como uma conquista civilizatória, como uma construção da inteligência humana e, ainda, como um domínio do homem sobre si mesmo em busca da superação de sua condição animal.

Falemos da poética e da poiética da obra de Nelson Wilbert. É vária, marcada pela inquietação, pelo experimentalismo, pelas incursões em caminhos díspares e pela diversidade de meios e fins. Mas nos deteremos na obra pictórica de Wilbert, que nos fornecerá os meios para uma imersão na sua poética. A escolha da pintura não é arbitrária, tampouco aleatória. Trata-se de uma eleição natural, considerando que sua carreira está fundada na questão do pictórico enquanto meio e fim. É na pintura que reconhecemos sua contemporaneidade, sua persistência, sua realidade e seu realismo, sua percepção, sua evolução enquanto artista e fabbro.

A obra de Nelson Wilbert caracteriza-se por uma integração indissolúvel de elementos aparentemente inconciliáveis: procedimentos como o citacionismo; conceitos operacionais como a camuflagem; a ideia de arte e decoração indissolúveis; os movimentos estilísticos sucessivos e contrastantes, como o classicismo, o barroco, o romantismo, o pós-impressionismo, o fovismo, o pós-modernismo; artistas como Leonardo da Vinci (1452–1519), Giuseppe Arcimboldo (1527–1593), Jean-Auguste Dominique Ingres (1780–1867), William Morris (1834–1896), Vincent van Gogh (1853–1890), Roy Lichtenstein (1923–1997), Andy Warhol (1928–1987); o gráfico versus o pictórico; a superfície versus a profundidade… Esses variados elementos compõem uma mescla de situações que aparentemente poderiam indicar uma divisão na sua obra e, assim, na sua coerência criadora. Mas não concordamos com a análise superficial das formas como indicador de cisões no discurso plástico e poético do artista; ao contrário, vemos nessa aparente fragmentação uma coesão incontornável, conquistada graças a um continuado esforço de pesquisa e síntese que perpassa sua carreira. Traçaremos um roteiro cronológico, respeitando o surgimento dessas questões e problemas e das suas respectivas respostas, em obras expostas em quatro momentos de sua trajetória.

Sua mais distante mostra de pintura foi intitulada tão somente Pinturas (Galeria Iberê Camargo, Porto Alegre, 1996). Era marcada por telas de formas nítidas, por sobreposições, supressões, síncopes, cortes, recortes e uma paleta vibrante, mas ainda tradicional. Formalmente, estava vinculada ao seu tempo e modo (anos 1990): grandes superfícies, áreas com indicações de procedimentos (uma espécie de fascínio pelo esboço, pelo inacabado, pelo indicado), um modo característico de pintar da época, que deixa ver a pintura se fazendo, como uma forma de fortalecer a presença do artista como fazedor. O desenho predomina, na medida em que contém as formas significantes do trabalho, ou seja, figuras e objetos. As figuras têm tratamento pictórico tradicional, com modulações de cores para indicar volumes e texturas de suas peles. As outras partes – roupas, objetos e fundos – recebem tratamento mais simplificado, meramente indicativo. Há um jogo desconstrutivo das figuras, que são multiplicadas e divididas nas linhas indicativas de seus perfis, nas sombras descoladas das formas estáveis e nos desdobramentos da própria imagem que se repete. A pintura é dominada pelas formas humanas, antes personagens da história da arte do que meras figuras, pois suas identidades e propriedades pertencem a Leonardo da Vinci e a Jean-Auguste Dominique Ingres. São telas que têm por mote o retrato: não o retrato identitário ou psicológico, mas o retrato histórico. Assim, a grande personagem dessas pinturas é a história da arte e seus ícones, nada menos. Pintura citacionista, na melhor tradição dos anos 1990, ancorada na legitimação (pela citação) da tradição e na permanência do fazer manual. Uma coisa sustenta a outra e, ambas, no seu colóquio, fundam a legitimação da pintura do período.

Comentamos que a pintura dos anos 1990 é caracterizada pela informalidade e por uma aparente ruptura com as regras do bem pintar. Suportes e materiais precários predominavam, em detrimento do bom fazer manual que, aparentemente, deslegitimava a pintura enquanto fim. Nas telas de Wilbert, o cuidado é extremo: chassis profissionais, telas bem esticadas, base aplicada para fazer a tela rufar, predominância do desenho de base sobre a gestualidade, uso comportado de cores, superfícies com tratamentos diferentes: as figuras são cuidadosamente modeladas, para não perderem suas identidades de “personagens” da história da arte, os objetos (poltronas) são configurações, nada mais. Os fundos, quando existem, são pictoricamente abertos, sem indicar sua função além de fundos (não são paredes, nem céus, nem painéis, nada).

A mostra seguinte foi Intersecção (Bolsa de Arte, Porto Alegre, 2004), exposição que, conforme escrevi na época, “[..] opera uma espécie de mixagem (como as mixagens musicais, um termo caro ao artista): uma base de arte (imagens icônicas da arte ocidental), uma sobreposição de referências culturais (biografia do artista, referências de outros artistas, citações etc.) e uma finalização artesanal (o próprio artista pintando)”.[2] Trata-se da fundação do conceito operatório que irá permanecer como central na obra do artista: a camuflagem. Essa série estrutura-se no princípio da criação de uma imagem que é gerada a partir da coexistência com outras. Um modo de acumulação de informação que vai da simples sobreposição, passa pela justaposição e chega à própria formulação de uma terceira coisa. Nessa exposição, a emulação, através da série de cópias das imagens de Vincent van Gogh, assume características de homenagem explícita. São pinturas monocromáticas, que investem no reconhecimento das formas, enquanto desenho, antes do reconhecimento das imagens. É uma espécie de traição de Van Gogh, pois a cor, o elemento identitário mais evidente do artista para o público (os amarelos de Van Gogh!) está ausente. A cor expressionista, dramática e emocional dá lugar ao processo construtivo das formas: pequenos toques justapostos, em direções e inclinações variadas, como se fosse um grande desenho com pincel. Como se trata de uma emulação de Van Gogh, tem uma diversidade de temas: paisagens, autorretratos, interiores, naturezas-mortas, nos quais os procedimentos pictóricos determinam os resultados de modo absoluto. Não se trata de pintura pura, mas de um modo de criar imagens através da pintura que utiliza procedimentos manuais extra-pictóricos e que, por sua vez, são a própria razão de ser dos trabalhos.

Na sequência, a mostra Espelhos (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006), constituída de retratos. Eram retratos de pessoas, não de personagens. Uma mostra aparentemente desconectada dos modos e meios utilizados pelo artista e que, ainda visivelmente, rompia com o distanciamento e o esfriamento da sua poética. Esses retratos, obras de encomenda (independente do fim a que se destinavam), foram elaborados entre 2001 e 2005, e eram a demonstração cabal de uma fase de grande experimentação pictórica. Experimentações que ocorriam nos modos de compor (de corpo inteiro, de três quartos, cabeça); de elaborar a composição: ora centralizadas, ora deslocadas; de compor o fundo de modo diversificado, com espatulados e riscados, gestuais e intensos; de elaborar as superfícies – peles e cabelos – desde um modo mais naturalista e delicado até a quase supressão da verossimilhança, pela rudeza da camada pictórica; de usar cores inconcebíveis para retratos (!), como fundos brancos e formas escuras contrastantes, formas escuras sobre fundos escuros indistintos, cores saturadas etc. Tudo declarava uma grande oficina de experimentações, uma espécie de tempo de ensaios, de esgotamento de possibilidades, de esvaziamento de expectativas. Não se tratava de uma mostra inócua na trajetória de Wilbert: ao contrário, era fundamental, pois após Espelhos, sua trajetória se direcionaria de modo incisivo para suas questões. Quanto ao significado simbólico da experiência de pintar e expor retratos, além da óbvia questão do espelhamento do artista na imagem do outro, ouçamos Maria Margarita Santi Kremer, que escreveu: “Desta vez, a identificação é a experiência dos afetos, com a análise das relações com as mulheres e com a pintura. É uma mostra de retratos que celebra não as personalidades, nem o pintor, mas sim o que lhe é mais precioso, ou seja, as possibilidades das ações e relações humanas”. [3]

A quarta mostra desse conjunto é Remix (Bolsa de Arte, Porto Alegre, 2011): uma exposição de síntese de resultados. Conforme escreveu o artista Carlos Krauz, para a apresentação da mostra, nelas ocorre “[…] o casamento de imagens de ícones da história da pintura com padrões formais. Esse casamento é aqui efetivado, grosso modo, em duas instâncias.  […] Uma delas é a da captura e manipulação da imagem no meio digital e, a outra, a sua transferência para a tela mediada pela pintura. […] Esse empreendimento consiste em ‘casar’ as imagens e padrões for – mais sobrepondo-os, através da transparência e dos filtros de cor dos programas digitais que domina”. E continua afirmando que “Esta exposição opera uma espécie de mixagem (como as mixagens musicais, um termo caro ao artista): uma base de arte (imagens icônicas da arte ocidental), uma sobreposição de referências culturais (biografia do artista, referências de outros artistas, citações etc.) e uma finalização artesanal (o próprio artista pintando). Obras originais, únicas e inequivocamente de Wilbert”. [4] Uma síntese, como afirmamos no início. Presentes as citações de imagens (de Leonardo e de Ingres), citação de imagem e modo de proceder, como em Lichtenstein, citação e uso dos padrões de estamparia de Morris, as formas seriadas de Warhol, os procedimentos pictóricos em tela e papel. Assim, a síntese se dá de forma total: _1 no uso do conceito operatório de camuflagem, que consiste em uma ideia que se apresenta como questionadora de significados na produção de uma obra teórica e que se repete ao longo de todo o seu desenvolvimento. Ela exerce um papel fundamental no trabalho porque dá um rumo, um fio condutor a toda a investigação e repete-se em diferentes fases, ora por inversão, ora por desdobramentos múltiplos. Essa ideia apresenta-se sempre com o intuito funcional, auxiliando na clareza do enunciado. A camuflagem, aqui, consiste na operação de sobrepor diversas camadas de informações visuais até a saturação e a criação de uma nova imagem; _2 no uso extensivo das citações do mundo das artes, a um só tempo conceito operatório e procedimento construtor, que consiste em referenciar-se exaustivamente ao mundo da alta cultura como forma de manter a tradição e legitimar sua permanência; _3 na permanência da pictorialidade como meio e fim da sua expressão plástica.

Esses jogos construtivos, elaborados dentro dos eixos dos estilos, dos assuntos e dos meios, reafirmam as características distintivas da trajetória de Nelson Wilbert. Inicialmente, enunciamos a sua fidelidade ao projeto de ser artista em tempo integral, projeto no qual ele perseverou, independente das dificuldades e per – calços, atitude rara dentre os da sua geração (que na sua maioria destinaram-se a outras atividades para subsistência financeira). Como decorrência desse projeto, podemos listar como seus princípios norteadores: _1 a prática da pintura como princípio, como meio de expressão e como fim de sua poética; _2 a flexibilidade de postura que lhe permite as experiências autônomas; _3 o amor incondicional à arte e a sua tradição; _4 o apreço pelo ateliê, como lugar privilegiado de trabalho e de espaço para a invenção. Estas são características que lhe garantiriam o destaque que ele tem dentre os artistas de sua geração, mas que associadas ao princípio do respeito às técnicas e à fidelidade às suas metas, ou seja, decorrências da ordem regular das coisas lhe dão um lugar proeminente dentre os nossos artistas contemporâneos. Importante reforçar que essa descrição de sua poética mantém-se fiel ao princípio da irredutibilidade da obra ao discurso: não se trata de explicar como foi feito (isso é passível de conhecimento através da análise detalhada das obras), mas sim de entender o que foi feito e qual a sua razão.

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­[1] PASSERON, René. Da estética à poiética. Porto Arte, Porto Alegre, v.8, nº 15, p. 103-116, nov. 1997.

[2] Intersecção. Catálogo de exposição. Porto Alegre: Bolsa de Arte, 2004.

[3] Espelhos. Catálogo de exposição. Porto Alegre: Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, 2006.

[4] Remix. Catálogo de exposição. Porto Alegre: Bolsa de Arte, 2011

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REMIX

Carlos Krauz, junho de 2011

As pinturas recentes de Nelson Wilbert nos apresentam um desdobramento sofisticado de sua produção caracterizada pela presença das camuflagens. Nelas o casamento de imagens de ícones da história da pintura com padrões formais solicitam do espectador um movimento constante, para que possa encontrar uma distância ideal para a sua fruição. Esse casamento é aqui efetivado, grosso modo, em duas instâncias. Uma delas é a da captura e manipulação da imagem no meio digital e, a outra, a sua transferência para a tela mediada pela pintura.

Mas como o artista opera o casamento das imagens? Primeiramente Wilbert busca uma imagem, como a da Mona Lisa de Leonardo da Vinci (1452-1519), por exemplo. Essa imagem passa por inúmeros processos de tratamento digital, permitindo-lhe a produção de variações a partir dela. Muitas são salvas no computador e se tornam possibilidades para seus projetos.

O passo a seguir é escolher a imagem de um padrão formal que pode ser o de uma camuflagem, utilizada nos uniformes de militares em combate ou um padrão formal de William Morris (1834-1896). Estas imagens são digitalizadas e posteriormente editadas também pelo artista.

Com as imagens editadas e guardadas na memória virtual, o artista empreende a concepção de seus projetos. Esse empreendimento consiste em “casar” as imagens e padrões formais sobrepondo-os, através da transparência e dos filtros de cor dos programas digitais que domina. Com eles o artista estuda o comportamento da cor, da forma e também produz uma quantidade muito grande de projetos num curto espaço de tempo. Segundo Wilbert, “seria necessário uma vida toda para fazer dezenas de projetos para cada pintura, caso fizesse todos os estudos manualmente. O computador é, para mim, uma ferramenta indispensável que me faz chegar mais rápido onde quero.” Após a conclusão dos inúmeros projetos, inicia-se o demorado processo de escolher, entre os projetos, aquele que será transferido para seu endereço final: a pintura.

Escolhido o projeto, o artista se depara com outros desafios. Um deles é o de transferir fielmente este intrincado desenho das imagens sobrepostas digitalmente para a tela, pois o emaranhado de linhas é complexo e coloca em xeque sua habilidade manual e perceptiva todo o tempo durante o processo. O outro é o de perseguir a cor conquistada à frente do ecrã do computador, pois ela é a sua primeira palheta de cores durante a concepção do projeto. E o desafio é reproduzir a cor-luz através da cor pigmento. Nos diz o artista: “Eu quero essa cor e a sua vibração luminosa, (…) sei que ela, como luz, possui outra natureza, diferente da cor pigmento, mas quero encontra-lá desejo seguir o projeto.” Assim a palheta de tintas de Wilbert percorrerá um íngreme caminho perseguindo a cor projetada.

Chegamos, agora, à pintura; ao lugar onde o casamento das imagens encontra seu terreno. E, olhando atentamente a sua produção e o modo como o artista opera esse casamento, ela nos faz pensar na sobreposição de ritmos que um DJ produz para embalar as raves. Neste ponto é o próprio Wilbert que nos fala: “Percebi que estou fazendo, ao associar imagens de ícones da história da pintura a padrões de camuflagens, um tipo de remix, como se chama no universo da música”. E, para remixar ritmos e melodias próprias ou de outros compositores, o DJ o faz também através de recursos computadorizados. Estes recursos permitem-lhe conceber a sua obra, executando ritmos e melodias simultaneamente; sobrepondo-os; promovendo o encontro ou o embate entre eles. Podemos ouvir, ocasionalmente, um ritmo ou melodia através das outras. Mas dificilmente conseguimos distinguir uma-a-uma. Seu resultado é uma música eletrônica; um remix que guarda pouco ou nada das fontes das quais se “originou”.

E, assim como com o DJ mergulhamos no universo estroboscópico, através do ritmo frenético das luzes e efeitos visuais; dos ritmos sonoros e ruídos, nas pinturas de Wilbert nosso olhar também a percorre e desliza num movimento que ora é tragado por um tom vibrante, ora é conduzido por uma linha. Num primeiro momento esta linha perfila um rosto. Mais adiante ela nos faz digredir e nos vemos perseguindo o indício do que seria uma flor ou motivo vegetal. Aqui experimentamos olhar de perto e olhar de longe. E de qualquer posição que a fitemos nos aventuramos num terreno que se simula conhecido. Um tipo de solo no qual vicejam quimeras digitais que nos exigem um olhar híbrido.

De modo amplo poderíamos dizer que Wilbert atua também como um DJ em seus procedimentos citando e remixando Andy Warhol (1928-1987), particularmente quando este retrata inúmeras vezes a mesma modelo, variando cores e efeitos de solarização da imagem; Leonardo da Vinci, especialmente com a Mona Lisa e William Morris com seus padrões formais.