Das tripas, coração*

Tripadeiras: o neologismo remonta às “trepadeiras”, plantas que necessitam se agarrar a outros vegetais ou estruturas para alcançar a luz do sol. Nessa busca, elas frequentemente se contorcem ao extremo e conquistam o que parecia improvável: força e estabilidade. O neologismo também sugere “tripas”, designação popular para o intestino dos animais, para o que é visceral, profundo, necessário. Pensado e depurado, o título da exposição que Téti Waldraff (Sinimbu, RS, 1959) apresenta no V744 Atelier alinhava, de modo singular, esses dois eixos.

O mote da exposição é desenho. De modo mais preciso: desenho e desejo. São eles os articuladores da produção da artista, que extrai do contato com a natureza as formas que transfigura em linhas e cores: “A primeira coisa que eu faço, ao acordar, é ir para o jardim da minha casa e observar as flores que estão desabrochando. O jardim é o lugar onde eu planto e nasce, em cada espaço, um pedaço de mim. Ao mesmo tempo, é uma simbiose intensa, porque eu vejo, nessas flores se abrindo, os meus desenhos se fazendo”.

Téti se divide entre Porto Alegre e Faria Lemos, distrito de Bento Gonçalves. Nos dois ambientes, é rodeada por árvores, arbustos e flores, que observa e fotografa compulsiva e amorosamente. É na fricção entre casa e jardim que ela instala seu ateliê móvel: um diário para múltiplas anotações; uma base para apoiar papéis e desenhar; um banco para sentar e enrolar metros e metros de tiras de tecido colorido, dando forma às “tripadeiras”.

A primeira vez que Téti apresentou suas “tripadeiras” foi em 2012, na exposição Economia da montagem, no Margs. Intervindo em um dos cantos da pinacoteca, ela instalou vasos cerâmicos para plantas, a partir dos quais estruturas filiformes e contorcidas, matizadas por estampas vibrantes e flores de seda, irrompiam copiosamente, espalhando-se pelas paredes e pelo chão. No cerne das gavinhas de panos, fios de eletricidade. Eles não são visíveis e estão sob camadas de tecido e de cor, mas é excitante pensar que a natureza desse material – conduzir eletricidade e, por extensão, energia – norteia a renovação pleiteada pelas “tripadeiras”.

A mesma lógica construtiva atravessa os desenhos bidimensionais, executados sobre papéis pretos doados pelo amigo e pintor Frantz. Na superfície, Téti transborda a paleta cintilante das canetas Posca, dando forma às folhas, flores e ramagens que parecem brotar de seu contato com as tintas; na espessura, cavouca o que parece improvável: o interior do suporte. E então encontra, no âmago denso e escuro, um inusitado rosa fúcsia, flama e viço.

“Alto risco – 21 desenhos para 2021” é o nome do principal conjunto em exibição, desenvolvido durante o isolamento imposto pela pandemia e que ela faz questão de expor na sequência rizomática em que produziu, como a atestar e a lembrar, para si própria, o fluxo dos dias vividos: alguns mais, outros menos intensos; alguns mais, outros menos luminosos: “Eu fiz esses trabalhos como uma espécie de mantra, concentrada e em silêncio, pensando no momento terrível que estávamos vivendo, mas pensando também na minha história”. Em conexão consigo mesma, identificou os liames entre tudo o que fizera e o que estava fazendo: percebeu como a orientação constante da arte-educadora Téti Waldraff, que incentivava os estudantes a confiarem na intuição e a criar brincando, regia seu processo; percebeu como os registros fotográficos diários e obsessivos saciavam seu desejo de adentrar metaforicamente no íntimo das plantas; percebeu a relação formal e processual entre os desenhos sobre papel preto com o projeto Jardim de Giz, desenvolvido em 2019 junto ao Centro Cultural da UFRGS; percebeu como os tecidos que a acompanham há tantos anos, matéria de pintura, estavam se adelgando e se transformando em linha; percebeu, de modo sereno, como ela vinha desenrolando um fio construtor calcado no desenho: “Tenho me dado o direito e o dever diário de olhar para a frente e para trás e, nesse exercício, percebo que tudo o que eu faço é desenho expandido”.

Fecundas e hipnóticas, cítricas e vigorosas, bi ou tridimensionais, as tripadeiras são resultado de um olhar sensível e apurado sobre a natureza, em sua admirável capacidade de renovação. Elas exalam a energia e o frescor de quem acredita na vida, ao mesmo tempo que evidenciam uma artista madura e plena, que não tem receio de colorir, de se contorcer e se derramar pelo espaço, fazendo da vida um ato de arte, fazendo das tripas, coração.

Paula Ramos

Crítica e historiadora da arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS

* Texto produzido para a exposição Tripadeiras, apresentada no V744 Atelier, em Porto Alegre, em comemoração ao aniversário de um ano do espaço, em outubro de 2022.