Carusto Camargo: ser cerâmico

 

Sou um escultor que se apropria da materialidade da cerâmica

Sou um ceramista que se apropria dos conceitos da escultura

Sou um utilitário que se quer inútil

objeto

sou uma escultura que se quer útil

invólucro

à minha morte

 

É desta forma, saramaguiando no texto, que Carlos Augusto Nunes Camargo (São Paulo, SP, 1962), o Carusto Camargo, conclui a escrita de sua tese de doutorado em artes, defendida em junho de 2008 na Unicamp (Campinas, SP). Sob o título “Ser cerâmico”, o poema expressa, em poucas linhas, uma admirável consciência do que se é e do que se busca – pelo menos “enquanto artista” –, apontando para a relação entre corpo biológico/humano e corpo do barro/cerâmico, principal eixo da sua prática e reflexão.

De 2008 a 2024, são 16 anos: o tempo de uma geração. As gerações têm suas marcas de mudança, e bem sabemos que tudo muda, o tempo todo. No entanto, a essência dos versos continua vigorosa para Carusto, como uma conquista da maturidade. É essa plenitude que ele nos oferece na exposição Terrosos, na Ocre Galeria, em Porto Alegre, abrangendo o mesmo arco temporal de 16 anos.

Ali estão as escultóricas e misteriosas “urnas totêmicas” (2006–2007), desenvolvidas ao final do doutoramento e que estabelecem uma relação de escala com o artista, ao mesmo tempo em que referenciam as urnas funerárias em barro, tão marcantes entre culturas indígenas pré-colombianas da Bacia Amazônica e dos Andes.

Ali estão, igualmente, obras resultantes do estágio pós-doutoral junto à Universidade de Lisboa (2014). Executadas a partir de um torno mecânico, elas têm as bases circulares e apresentam ora as faces internas, ora as externas, trabalhadas; ora alusões a elementos arquitetônicos da região do Alentejo, em Portugal (janelas e passagens), por subtração ou escoamento de matéria; ora alusões a elementos do corpo humano (umbigo e mamilo), por modelagem e adição de matéria. Silentes, algumas têm o sugestivo título de Entorno de um corpo, remetendo ao centramento do corpo do oleiro diante do torno e da relação que ele estabelece com esse outro corpo, o cerâmico. Torno/entorno/tornar-se.

Ali estão, ainda, objetos produzidos nos últimos dois anos, que afrontam a ideia corriqueira associada à cerâmica: seu caráter utilitário. Os potes de Carusto têm furos e fissuras; as moringas exibem um bocal mínimo, disfuncional; os vasos sugerem a ação da gravidade e os embates do artista na modelagem, abrindo-puxando-afinando as massas de um lado para o outro, virando as peças de ponta-cabeça duas, três, muitas vezes. Todos evocam, de algum modo, questões perenes para o ceramista: discutem a ambiguidade entre volumes externos e o vazio interno; revelam o fascínio pela superfície, explorada por meio de rugosidades, incisões, acréscimos, impressões, aparências sensuais e acetinadas; apontam para as suas grandes referências: Victor Brecheret, Henry Moore e Constantin Brancusi, que investigaram os valores escultóricos e os processos de síntese formal e simbólica.

A história de Carusto com a cerâmica rende boas reflexões. Ele estava às portas dos 40 anos quando corajosamente abandonou uma bem-sucedida carreira como engenheiro eletricista e professor de matemática para se dedicar às artes visuais. O disparador foi um convite de “Dona Pituca” que, um dia, saindo para a aula de cerâmica, provocou o filho. “E eu fui. Imagina: um marmanjo indo à aula com a mamãe…”. Geminiano curioso, inquieto e obsessivo, moldou-se ao barro, que lhe ofereceu um ambiente de repouso e potência criativa, no qual encontrou a si próprio. Em pouco tempo estava conversando com Lalada Dalglish, Megumi Yuasa e sobretudo, Luise Weiss, sua orientadora na pós-graduação, que lhe desafiou a pensar acerca do lugar da arte e do artista na sociedade. A compreensão e o sentimento diante do papel fundamental dessas trocas o levaram à docência.

Professor do Instituto de Artes da UFRGS desde 2007, Carusto Camargo busca incutir esse entusiasmo entre os estudantes, estimulando-os a encarar seus desejos, lutar pelas coisas nas quais acreditam e desafiando-os a expandir o campo da cerâmica, em diálogo com outras linguagens, como a gravura, a pintura e a fotografia. Nessa transversalidade, frequentemente recorda, principalmente pela ação, de algo telúrico e primordial, que nos conecta não somente à tradição judaico-cristã, mas à própria história da humanidade: do barro viemos, e a ele, real ou simbolicamente, retornaremos.

*Paula Ramos [crítica e historiadora da arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS]

Carusto Camargo expõe

sua paixão pela cerâmica na Ocre Galeria

(Publica no Jornal do Comércio em 04 de março 2024)

 

A paixão pelo desenho veio ainda na infância, mas o encantamento por cerâmica surgiu de repente na vida de Carusto Camargo. O artista nasceu em São Paulo, mas veio a Porto Alegre em 2007, para lecionar no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O professore artista conversou e refletiu sobre arte com a reportagem do Jornal do Comércio. Ele conta que é da geração que nasceu no final do regime militar e, na época, havia os colégios vocacionais, que ensinava artes visuais, música, teatro, danças, práticas comerciais, educação doméstica, ciências, entre outros assuntos. No início de sua adolescência, Carusto cursou quatro anos de artes visuais e industriais. “Mas depois eu segui para a área de exatas, fui para o colégio técnico e fiz eletrotécnica, me formei em engenharia. Mas acho que essa sementezinha da arte ficou comigo”, conta o artista.

Anos depois, já com uma carreira na engenharia, além de professor e pesquisador, ele, que morava em Campinas, foi visitar sua mãe na capital e a acompanhou em sua aula de cerâmica. “Foi até engraçado, eu tinha 30 anos e fui acompanhar minha mãe que nem criança. Mas ali eu fiz uma aula, comprei um pedaço de bloco de argila, voltei pra Campinas e já arrumei um lugar para fazer, e nunca mais consegui parar”, compartilha Carusto. Ele também cursou disciplinas relacionadas ao assunto na Unicamp e no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo.

Ele conta que já explorou outros materiais para esculpir, como resina, e também a fotografia, mas sua paixão é a argila e suas possibilidades. Seus viés foi uma figura mais abstrata, humana mas com distorção de linhas. Ainda em Campinas, montou seu ateliê e também produziu muitas obras com intuito de serem utilitárias, tanto para ter propriedade ao ensinar para os estudantes, quanto para poder vender mais facilmente e garantir renda com a arte. Ele procurou conhecer mais as questões técnicas, de processos, queimas e esmaltação.

“Aí quando eu venho para cá, no mestrado, eu começo a discutir questões da esculturas relacionadas aos meus afetos pessoais. Já no doutorado, eu comecei um trabalho de revisitação da cerâmica antropológica do vale da Bacia Amazônica”, explica. Carusto conta que o estudo também faz com que a produção artística parta de algum ponto novo. No momento, ele tem produzido vasos que são esculturas, começam com o formato de poder conter algo dentro, mas durante o processo sofrem alterações que já não permitem isso e viram obras de arte. “E às vezes uma experimentação com outros materiais pode ser mais cerâmica do que simplesmente pegar uma forma de gesso e tirar uma cópia”, reflete Carusto.

O artista afirma que gosta de propor algo e provocar algum estranhamento por parte do público, e nele também. Uma coisa que Carusto gosta muito, e também provoca seus alunos, é discutir sobre conceitos de arte. Ele cita o livro Crítica do Artesanato, e conta que os colonizadores espanhóis e portugueses introduziram na América Latina a diferença no imaginário popular sobre o que é arte e o que é artesanato. “Eles fazem isso para, de certa maneira, desqualificar toda a produção cerâmica e a cultura que existia aqui. Então o artesanato passa a ser algo pejorativo, mesmo algumas produções daqui sendo superiores as de lá [Europa]”, enfatiza o docente.

Carusto reflete sobre as diferentes motivações e maneiras de pensar e fazer arte. “A pessoa pode fazer uma xícara só porque quer tomar um café, ou pode fazer uma xícara a cada dia do ano para documentar a passagem do tempo e ver como cada peça se altera”, exemplifica. Nas suas aulas, ele gosta de fazer seus alunos pensarem fora da caixa e explorarem as técnicas. O artista também comenta que gosta muito de consumir arte que “a moçada jovem está fazendo, mesmo quando é uma revisitação de um movimento que aconteceu há décadas, é sempre uma energia boa”.

Como alguém que gosta de pensarem arte, além de fazer, Carusto conta que foi provocado por um curador durante a Bienal de São Paulo, que o perguntou sobre o que é arte. “A primeira é a noção do belo, ver algo e pensar que está perfeito, não precisa adicionar nada e nem tirar, está completo. A segunda é que algo passa a ser considerado arte quando é institucionalizado por alguma galeria, museu, fundação… E a terceira, é a que eu gosto mais: arte é arte quando ela comunica uma ideia”, diz ele.

Bruna Tkatch [reportagem]