“  ORQUESTRAÇÃO  ‘SAMPLEADA’  “

por Carlos Krauz *

Acompanho a produção artística de Nelson Wilbert desde o início da década de 90. Na ocasião, talvez na metade da década, em algumas pinturas já encontramos imagens de obras de mestres do Renascimento italiano. Elas surgem ora inseridas em uma figura maior, ora fundidas em um padrão formal que nos remete ao refino gráfico de Gustav Klimt (1862-1918). Nesse ponto talvez tenha nascido o que Wilbert denomina hoje ‘espaço compartilhado’, apontando seu olhar parta a historia da arte como modelo e motivador e para a sobreposição como procedimento instaurador da simultaneidade de convivência entre padrões geométricos ou orgânicos.

Um bom caminho para nos familiarizarmos com a produção recente de Nelson Wilbert é entendermos o que significa para ele ‘espaço compartilhado’, já que a presente montagem se dá dentro de um espaço físico compartilhado. “Espaço compartilhado é aquele onde duas ou mais coisas convivem simultaneamente, de modo harmônico ou não. Mas para que essa convivência se efetive preciso chegar a um estado de ‘folha em branco’,  semelhante ao  que acontece com o ator que, para encarnar uma nova personagem ‘esvazia-se de si’. Precisa compartilhar seu todo físico e mental para dar nascimento à personagem”. Para Wilbert o ‘esvaziamento’ permite abrir mão da autoria ou da originalidade da obra ao escolher imagens e não um modelo do mundo real. Essas imagens ‘bebem’ na fonte do passado clássico através de temas épicos, mitológicos ou religiosos. Nas palavras do próprio artista: “olho para dentro; não olho para o real ou para um modelo vivo a minha frente. Eu olho para a história e as estórias que essas imagens contam. Para a maneira como elas foram vistas, descritas ou sentidas”.

Mas de que modo o artista nos apresenta isso ? Sobrepondo detalhes de imagens de obras icônicas a padrões florais ou geométricos. Esse processo, que se inicia dentro de programas de tratamento digital da imagem ao computador, gera múltiplas imagens com variações formais e afinações cromáticas. Dentre esses ensaios o artista escolherá um para a segunda fase, que será a sua transposição para a tela ou papel.

Analisando duas obras que tomam por modelo um detalhe da pintura Leonardo Da Vinci (1452-1519), intitulada ‘La Belle Ferronnière’ vemos, na versão ‘floral’, a transposição da figura feminina que nos olha, atravessada e fundida a uma padronagem vegetal que ora parece originar-se do fundo, ora da própria figura. Ficamos perplexos diante de seu olhar aparentemente cândido e indiferente a um tipo de invasão perpetrada pelo fundo que dissemina-se sobre ela ou, quem sabe, ‘retrata’ seus devaneios.

Na versão denominada ‘sob padrão rígido’, a mesma imagem está pouco precisa. Lança-nos seu olhar entre frestas geométricas. Uma camada estriada que sugere um filtro precário. São quase arranhões sobre a figura evanescente.

E aqui chegamos ao momento crucial no qual Wilbert, ao se encontrar diante da quantidade de imagens geradas e afinadas no computador, escolher aquela que irá projetar sobre o suporte desenhando-a, seguindo os contornos da projeção. Também nessa etapa equaliza as cores projetadas àquelas que prepara na palheta. E, desde a primeira cor ‘copiada’ do écran até a conclusão da obra, as cores serão demoradamente afinadas. Uma cor vibrante aplicada ao lado de outra também vibrante pode perder o seu vigor assim como qualquer alteração num canto da imagem cria uma nova dinâmica e requer novo arranjo.

Ao orquestrar formas e cores nesta etapa o artista se deu conta que estava lidando com um modo operacional  diverso de obras anteriores. Aqui ele passou a perceber que o conceito associado a esse fazer era ‘samplear’, que é um anglicismo provindo do termo “sample’, que significa amostra ou também o ato de coletar. Com isso em mãos o artista coleta, analisa, combina e recombina imagens, padrões e personagens à exaustão, orquestrando formas e cores que lhe possibilitam uma gama infinita de sobreposições/combinações a tal ponto que, ao contemplarmos cada obra, podemos estar diante de uma amostra. De uma possibilidade entre tantas que poderiam estar ali. Entretanto o ‘filtro’ do artista disponibiliza-nos aquela solução permanente mas passageira, pois guarda, em sua semente, a potência para voltar em outra obra talvez camuflada por outro título, operação ou escolha.

Agosto de 2023

* Carlos Krauz é artista visual e Mestre em Poéticas Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul