O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção

Douglas Freitas, 2021

Texto para instalação inaugurada no Instituto Inhotim em 2021

A produção de Rommulo Vieira Conceição parte da sobreposição de elementos presentes em espaços públicos e privados. Em suas obras objetos e arquiteturas são reorganizados, fundindo ambientes, de modo a causar deslocamentos simbólicos e funcionais. A obra O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção, foi criada a partir de uma pesquisa de campo realizada pelo artista em Brumadinho, Mário Campos, e outras cidades da região que circunda o Instituto Inhotim, além de Belo Horizonte e as Cidades Históricas de Minas Gerais. Nela, percebemos a justaposição de arcos, cúpulas, paredes, grades, andaimes, quartinhas e frontões. Essas estruturas arquitetônicas expressam valores sobre a história da arquitetura e da arte, ambas, influenciadas por diversas manifestações socioculturais ao longo dos séculos.

Na instalação, uma espécie de coleção de aparatos arquitetônicos, oriundos da observação do artista de espaços de sacralidade, são desconectados de seu contexto originário e sua funcionalidade, para se reconectar em uma espécie de praça ou monumento ecumênico. Os arcos, por exemplo, perdem a sua funcionalidade estrutural arquitetônica e passam a sustentar o nada, ou talvez, deixem de sustentar a representação do céu das arquiteturas sacras, para o deixar o céu real ser visto através deles.

A obra conduz o olhar para diferentes pontos de vista, acentuando a desorientação desse espaço em estado de construção. Esses fragmentos de arquiteturas sacras se mesclam a uma arquitetura escolar seccionada, e juntos sustentam, simbolicamente, a ideia de fé no conhecimento, e em uma construção conjunta da humanidade.


A convivência dos objetos

Cíntia Guedes, 2020

Texto para a obra Quando a posição define o espaço social, sendo objeto continente dessa posição para o programa de exposições CCSP 2020

Nunca houve e nunca haverá um observador que apreenda o mundo em uma evidência transparente, entretanto, a promessa de capturar e organizar todas as coisas que chegam a ser vistas ainda não deixou de ser feita, sustentando a fabulação colonial/moderna da subjetividade autônoma, e encontrando expressões diversas no campo das artes visuais. A instalação de Rommulo Vieira Conceição para o Programa de Exposições 2020 do CCSP, no entanto, acena para o fato de que o que a gente enxerga é sempre muito maior do que qualquer modelo de perspectiva que possamos encontrar nas imagens da arte.

No trabalho, a visão do artista, que é geólogo e conversa com o design em seus trabalhos de fotografia, instalação, vídeo, desenho, pintura e fotografia, é mediada pela computação. A impressão aparece como vocabulário e condição de aparecimento das imagens. Quando finalmente encontramos as imagens dispostas nas dez placas de vidro sobrepostas, elas não se referem apenas a “algo” que está no mundo real, mas também a milhões de bytes que se recusam a servir exclusivamente ao mimetismo realista de uma organização visual hegemônica.

Dispostas umas sobre as outras, as placas projetam quatro prateleiras onde convivem leiteiras, taças de cristal da Bavária, vasos, como a ânfora do norte africano, o brasileiríssimo copo americano, as garrafas de coca-cola, entre outros muitos objetos. Todos imprimem vidro sobre vidro e guardam relações com territórios e contextos específicos. Certamente, podem ser lidos em relação a um mesmo tecido historicizante e localizados na história da arte, entretanto, na instalação, não obedecem a uma organização previsível ou conformada com o tempo da História. Jonathan Crary, em Técnicas do Observador, 2012.

Afirmação do próprio artista em conversa para esta publicação.

Também projetados em vidro, aparecem o pilão de madeira, a frigideira de alumínio e o típico filtro nordestino de barro coral. Com a alteração do material “original”, os objetos ganham a qualidade das peças que ficam guardadas em cristaleiras. O artista nos informa, assim, seu interesse em tratar das im/possibilidades de penetração nos espaços, problemática já presente em trabalhos anteriores, como, por exemplo, na instalação Em Suspensão (2019) e na instalação/escultura A fragilidade dos negócios Humanos Pode Ser Um Limite Espacial Incontestável (2015), que evidenciam a insistência de Rommulo em interpelar os limites e fracassos das aspirações ideológicas de integração democrática do modernismo nas artes.

Na presente exposição, destaca-se a investigação das relações ópticas que, na impressão do preto sobre a transparência nas placas sobrepostas, exploram os limites da bidimensionalidade, podendo operar cisões na base cartesiana da perspectiva, pela qual educamos nosso modo de olhar. Aqui, o convite é para que se habite, em caráter definitivo, as fraturas de um olhar contemporâneo que desconfia e duvida.

Na instalação, a profundidade não é o principal operador visual da perspectiva. O artista investe em uma relação entre os objetos na qual cabe às pessoas visitantes a tarefa de lidar com porções indefinidas em cada imagem. Por conta da disposição das placas e da impressão fragmentada, um objeto não pode ser localizado em uma única posição.

Trata-se do esquadrinhamento do olhar, operação experimentada pelo artista em trabalhos anteriores. Desta vez, não sabemos o que está próximo ou distante, nenhuma imagem vem antes ou depois. Quem se põe diante da instalação talvez precise acionar o próprio corpo, colocar-se em movimento, ajustar altura e angulação, reposicionar o olhar.

Encontramos, por exemplo, na série fotográfica Entre o espaço que eu vejo e percebo, há o plano (2015/16), um jogo evidente com as dinâmicas do olhar que, naquela ocasião, se dava em linhas de opacidade e nitidez que dividiam uma mesma imagem fotográfica.

O trabalho foi pensado para ser mostrado de duas maneiras: uma delas composta por trabalhos individuais formados por um conjunto de placas de vidro (como aprestado na figura). A outra, como uma grande instalação, na qual muitas placas são sobrepostas uma às outras criando um ambiente frágil. Nesta segunda configuração, uma luz baixa pode se encontrar à frente das placas (ainda sob teste) aumentado o caráter de tidimensinalidade dos desenhos.

Rommulo faz da instalação um dispositivo óptico pelo qual cada objeto, que não pode ser capturado pelo o olhar de forma isolada, está imbricado em múltiplas posições sociais, culturais, e forças em político-econômicas. Testemunhando a convivência dos objetos, aquel_ que vê pode abandonar a ilusão de sua própria transparência e perceber-se “vendo”.

Estudando a transparência e explorando relações de refração e reflexão de modo rigoroso, o artista recusa também a possibilidade de apreensão das imagens de forma continuada. Fratura, assim, o acordo de disposição geométrica-espacial dos objetos pelo qual nosso modo de ver sequencializa o que vemos em um espaço determinado, de modo a confirmar uma certa intuição do tempo como linearidade.

Não há intervalos possíveis entre o ponto de aparecimento de uma imagem e de outra, que surgiria antes ou depois, em uma mesma linha ou em linhas paralelas. Rommulo aposta radicalmente na co-existência dos objetos, e a abstração matemática e intelectual pela qual compreendemos a ideia de extensão temporal como a medida da distância entre o ponto de aparecimento de um objeto seguido de outro, em uma linha contínua de acontecimentos, é implodida. O trabalho abre-se, aí, a uma conversa cara às artes diaspóricas em seus anseios do descolonização do olhar e da própria intuição do tempo.

Na recusa em sequencializar e espacializar as imagens da instalação enquanto unidades de representação, aparece também a resistência em submeter as imagens exaustivamente a relações de semelhança, como referentes exclusivo daquilo que, no real, promete-lhes significância absoluta. Podemos relacionar contextos particulares e territórios específicos para cada imagem impressa, contudo, uma vez que se tocam e deformam, elas não podem ser resumidas a posições autônomas, pois só existem como imagens enquanto se manifestam umas nas outras.

Reside aí o anúncio de um modo de existência implicada que, na convivência dos objetos do trabalho de Rommulo Vieira Conceição, responde ao mesquinho presente histórico em que vivemos a partir de potentes desdobramentos estéticos, aspiram outros modos de conviver e convocam uma ética das relações ainda porvir.


Terra-a-terra

Roberto Conduru, 2019

Em suspensão, de 2019, é um exemplo de como Rommulo Vieira Conceição lida de modo ao mesmo tempo engajado, desenvolto e crítico com o modernismo artístico brasileiro. Não me parece difícil entrever nessa obra alguns pontos altos da vertente construtiva constituída a partir do país desde o final da década de 1950: Penetráveis e Magic Squares de Hélio Oiticica, Objetos Ativos e Pluriobjetos de Willys de Castro, Objetos Emblemáticos de Rubem Valentim, a série Morar na Cor de Lygia Pape e até Bichos de Lygia Clark.

Em 2013, Em suspensão foi apresentada com o plano localizado na parte inferior à esquerda em negro. Na versão apresentada em Tudo que é sólido desmancha no ar, exposição solo realizada no Centro Cultural do Tribunal de Contas da União, em Brasília, em 2019, o artista substituiu o preto por laranja nesse plano e usou a mesma cor na parede a partir da qual a obra se projetava. Estendendo-se cromaticamente ao muro, Em suspensão agregava a si o edifício projetado por Oscar Niemeyer e, por extensão, a cidade, a capital brasileira projetada por Lúcio Costa em 1957 e inaugurada em 1960, que é ao mesmo tempo um ponto de culminância e de virada no modernismo brasileiro.

Sutil, essa homocromia é um indício de como o construtivismo, mais do que uma linguagem que Vieira Conceição conquistou para si, é para ele um problema. Ou melhor, é uma parte de um problema maior: a modernidade como projeto desde sempre falido. Lidando com obras de artistas que vivenciaram a crise do idealismo modernista e aventaram utopias alternativas, menos ou mais ambiciosas, ele reativa a vertente construtiva da arte no Brasil, mas visa a interromper a inércia com a qual ela poderia se cristalizar como tradição estéril, autoridade inconteste. Evitando citações, ele enfrenta referências artísticas cruciais daquela vertente de um modo simultaneamente fluido e tenso que deriva tanto do prazer estético quanto da pulsão crítica que anima o seu fazer artístico. Nessa obra, ao apoiar os volumes de cor, os planos de vidro e as hastes metálicas na parede ou no chão, ele explicita que a suspensão anunciada no título da obra se refere não aos seus elementos plásticos, mas a suas referências artísticas, culturais e sócio-políticas. Assim, põe o construtivismo em suspenso para enfrentar os engodos da modernidade.

Em suspensão acirra a crítica ao desdobrar e superpor, sem intentar coerência ou conciliação, obras já em si reflexivas. Planos, volumes e espaços de Penetráveis e Magic Squares estão comprimidos, restringindo a deambulação e acentuando o enfrentamento corpóreo da cor instaurado por Hélio Oiticica. Enquanto Objetos Ativos reaparecem agigantados, encorpados e amontoados nos volumes verticais à esquerda, Pluriobjetos ressurgem ainda mais condensados nos ganchos metálicos, acirrando o exercício da dúvida proposto por Willys de Castro. Ganchos que vão além de desencorpar, ossificando mesmo os Bichos de Lygia Clark, ou nos quais podemos imaginá-los pendurados, assim como outros corpos, os nossos entre muitos.

Pontiagudos, polidos e luzentes como as lâminas de vidro, esses ganchos são índices de violência que exacerbam a tensão plástica, constituída a partir da conjunção não propriamente harmônica de espacialidades perspectivadas e planares, assim como de jogos cromáticos exaltados que não almejam equilíbrio, nem apaziguam contradições. A obra se expande e se recolhe, se abre e se fecha. Ambiguamente, os planos de vidro constituem um nicho que atrai, sugere acolhimento, proteção, refúgio, mas também ameaça clausura. O convite para fruir formas e cores, materiais e texturas não escamoteia ser uma convocação para que as pessoas abandonem a passividade, deixem de ser meras espectadoras, atentem à obra, a si e ao mundo. A sedução se revela demanda, chamamento.

Vieira Conceição sabe que é não apenas impossível mas sobretudo inócuo persistir manipulando planos, volumes, cores e materiais para configurar novos objetos e espaços, utilitários ou não, visando a delinear futuros tão inauditos quanto infactíveis. O artista não partilha do idealismo construtivo, assim como descrê de revisões subjetivas ou culturais daquela utopia. Para ele, a partir do embate com alguns dos grandes feitos do construtivismo no Brasil, o desafio é reativar a dimensão propriamente crítica de seus princípios e de sua linguagem para por em xeque as falsas promessas da modernidade.

Nesse processo, Vieira Conceição também dialoga com a série Espaços Virtuais: Cantos, de 1967-1968, na qual Cildo Meireles aborda com ironia crítica a arquitetura cotidiana e a perspectiva euclidiana, mas também as projeções emancipatórias do construtivismo e do modernismo. Tanto Espaços Virtuais: Cantos quanto Em suspensão promovem uma interatividade problemática, na qual as pessoas se frustram ao verem negadas suas expectativas, sendo um tanto enganadas para que exercitem o ato de duvidar dos próprios sentidos, de convenções, do mundo. Ao tentar perceber Em suspensão, inescapavelmente vemos nossas imagens refletidas nos planos de vidro, as quais os tornam menos transparentes, algo translúcidos, além de nos imiscuir à peça. Entendendo a reflexão como exigência primeira à sobrevivência em uma conjuntura sociocultural alienante, Vieira Conceição investe na obra de arte como artifício reflexivo de oposição ao status quo.

Aparentemente inofensivos, também os tijolos aparentes de Em suspensão estão inseridos na crítica ao modernismo, mais particularmente no processo de (auto)crítica da arquitetura modernista, no qual foram usados para explicitar a verdade da construção contra o idealismo de paredes revestidas, monocromáticas e lisas com as quais se configuravam os planos, espaços e monólitos abstratos do racionalismo purista. No entanto, nessa obra de Vieira Conceição, ao serem dispostos em faixas, os tijolos adensam a crítica ao se referirem ainda ao uso decorativo do que almejava, mais do que externar a verdade rústica da construção, expressar o trabalho humano sem o qual não se constrói. Não por acaso, a associação das faixas de tijolos, o volume horizontal e os ganchos metálicos remetem às bancadas de apoio de churrasqueiras que grassaram à volta de piscinas em casas de diferentes classes sociais em bairros menos ou mais periféricos das cidades brasileiras. Além de indicar a captura como linguagem, a transformação em estilo – o dito brutalismo arquitetônico¹ –, do que pretendia ser um elemento crítico, as faixas de tijolos dão a ver que as referências do artista não se restringem ao universo erudito e de elite.

No entanto, ele não idealiza os campos da cultura popular e de massas. Nas casas da periferia pobre do Rio de Janeiro registradas por Lygia Pape em sua série Morar na cor, ela via “uma liberdade existencial” na vivência cotidiana na cor. A meu ver, Em suspensão não aposta na experiência cromática como aventura existencial, nem crê em liberdade nas margens das cidades brasileiras. Estendendo o laranja da obra à parede, Vieira Conceição me parece parear com o elogio de Pape ao uso corpóreo-tectônico da cor para atacar o branco edulcorado por Niemeyer – “incendiando”, como diz Pape, Vieira Conceição critica cromaticamente o purismo modernista.

Por meio da cor, Em suspensão remete também à obra de Rubem Valentim, que apostou em uma relativização da racionalidade ocidental ao constituir uma linguagem plástica virtualmente universal fundindo o construtivismo com outras referências, eruditas ou não, especialmente a cultura material e simbólica de terreiros de candomblé e de centros de umbanda, assim como as artes da África a partir de coleções de museus e outros tantos sistemas de signos. Mas Em suspensão não se fundamenta, como a obra de Valentim, em sínteses artísticas como metáforas de um desejável equilíbrio harmônico de sistemas culturais, quando não de potências políticas. Autolimitado às cores ditas primárias e secundárias, Vieira Conceição intensifica o jogo cromático para combater desarmonias socioculturais. E embora se restrinja ao simbolismo construtivista, sua intervenção alcança o globo por meio da amplitude do objeto que critica: o modernismo alastrado mundo afora.

Com certeza, Em suspensão se enreda no encadeamento da arte como autorreflexão, fala da arte, da vertente construtiva e de suas inflexões a partir do Brasil. Em parte, para criticá-los. De outra parte, porque sabe que a arte é um sistema que, ao refletir sobre si mesmo, fala do mundo, da vida. Assim, Vieira Conceição se alça ao domínio simbólico, de certo modo em suspenso, da arte para justamente falar do real, visando ao que é básico, comum, terra-a-terra. Nessa obra, evitando ícones e até mesmo indícios figurativos da realidade, ele não deixa contudo de falar do mundo. O artista joga com cores, materiais, planos e volumes como elementos em si, concretos, mas também como símbolos de arte e cultura. Paradoxalmente, a obra se estrutura com a linguagem já um tanto autorreflexiva e até ensimesmada do construtivismo para romper com a suspensão estética na qual pairam os grandes feitos do modernismo, e chamar as pessoas a pensarem o mundo a partir da experiência sensório-racional e simbólica constituída especificamente

naquele ambiente em Brasília. Contra seu aparente esteticismo, Em suspensão trata da brutal desigualdade em que vivem as populações subalternas, seja na capital brasileira seja nas demais cidades, no país e alhures, projetadas ou transformadas de acordo com os princípios modernistas. Com essa obra, Vieira Conceição propõe uma reflexão sobre os objetos, espaços, edifícios e ambientes que ajudam a constituir uma sociedade absurdamente desigual como a brasileira, que silencia, discrimina, marginaliza, segrega, diminui e aniquila como poucas. Indo além, a partir daquele acontecimento singular naquele ponto específico do planeta, ele nos faz pensar sobre a exclusão própria à modernidade global.


Estruturas em colapso

Agnaldo Farias, 2019

Texto curatorial para exposição “Tudo que é sólido desmancha no ar”, no TCU, Brasília, em 2019.

O homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem.

Octavio Paz

A linguagem é um vírus que veio do espaço.

William Burroughs

Qual seria o interesse da biografia de um artista na análise de seu trabalho? Afinal, como escreveu o grande poeta russo, Joseph Brodsky, os dados verdadeiros das biografias dos poetas, a maneira do que acontece com os pássaros, “estão na sonoridade peculiar de seu canto. [A biografia dos poetas] está em suas vogais e sibilantes, em sua métrica, em suas rimas e metáforas”. 1 Um ponto de vista a ser considerado, sem dúvida, mas há casos, e Rommulo Conceição figura entre eles, em que a biografia fornece uma chave de compreensão do trabalho. A série “Do espaço que eu vejo e percebo , há o plano”, que recebe o visitante, serve simultaneamente como introdução e coda da exposição. Em cada uma das peças que a compõe há sempre uma paisagem diurna, noturna, vegetal, rochosa, não importa, todas elas rigorosamente divididas por linhas finas pretas, como um caixilho assimétrico, um vitral/quebra-cabeças cujas unidades são formas quadrangulares, aparentado com as malhas racionais, as modelações paramétricas, biomiméticas e associativas que jogamos sobre o mundo. Os campos quadriláteros dividem-se entre aqueles que dão a ver a paisagem com nitidez e aqueles que a embaçam, apresentam-nas de foco, por efeito aparente de umidade, da troca de calor com o ambiente externo. Há, portanto, uma lógica bifurcada entre uma representação que dá a ver com clareza o mundo exterior, como se não houvesse anteparo e separação entre dentro e fora, e uma película que denuncia sua presença, como um efeito de linguagem que ao passo que dá a ver o mundo, dá-se a ver como fator de afastamento do mundo. A questão que se coloca, e que Rommulo nos apresenta de modo encantadoramente simples, é: haverá mundo fora da linguagem?

O currículo do artista não omite sua formação em geologia, seu doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –UFRGS-, em associação com a Australian National University, de Canberra, mas exclui por completo sua atuação como professor na área de Geociência junto a instituição gaúcha. Lido diagonalmente, que é como se costuma ler essa modalidade menor e monótona de literatura, o de Rommulo faz crer que suas duas faces não se comunicam, mais um caso de vidas profissionais paralelas em que uma não entra em contato com a outra. Pois, como se vê nessa exposição, o artista e o professor/pesquisador Rommulo Conceição comunicam-se, interpenetram-se, fecundam-se mutuamente.

Nessa mostra composta por fotografias, desenhos e instalações, algumas delas misturadas, o visitante perceberá vários cruzamentos disciplinares, além do domínio do artista na lida com sistemas científicos de representação, com desenhos técnicos realizados digitalmente, controle patente no modo como ele testa e questiona sua plasticidade, coloca-os em colapso.

Como prova do caráter multidisciplinar da poética de Rommulo, tem-se o jogo entre design e arte: de um lado, objetos triviais, cotidianos, fragmentados ou inteiros, projetados e executados com o apuro típico dos móveis e objetos que povoam as lojas de decoração contemporâneas, e, de outro, a inutilidade característica das obras de arte. (Se há um ponto de dissonância entre design e arte, é o apego desta em manter-se insubordinada às demandas práticas da vida. Algo a ver com a clássica definição de “Xadrez”, dada por MilIôr Fernandes: “Jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez.”) Obras como “Sala, banheiro e serviço”, “Uma mesa” (quantas mesas contém esta mesa? Ou seria apenas uma mesa sofrendo rotações, a maneira de uma casa de Peter Einsenman, do período desconstrutivista?), logo se nota, não nascem do improviso, mas do jogo premeditado de formas, do curto circuito de estruturas.

A ideia de que estamos dentro de um laboratório dedicado a manipulação e materialização de formulações matemáticas, geometricamente absurdas ou incongruente, complexas como os desenhos do artista holandês M. C. Escher, fica evidente já na pintura das paredes da sala de exposição: cores nítidas, vívidas, brilhantes, artificiais; tonalidades agressivas de verde, vermelho, azul, laranja, próprias aos ambientes e artefatos plastificados ou feitos de resina de epóxi, com suas bordas abauladas e a promessa de limpeza fácil. Essas também são as cores dos desenhos que compõem a série “Tudo que é sólido desmancha no ar”, que dá título a essa exposição. Desenhos digitais de estruturas desmontadas, explodidas, diáfanas e precisas como projetos de engenharia, embora fragmentadas; desenhos incompletos e enigmáticos como novos desenhos parietais que, em lugar de milenarmente fixados em paredes de cavernas, pairam sobre imagens atmosféricas obscuras, visões parciais e cromaticamente manipuladas do nosso planeta, não fossem recobertas ou contrapostas a campos de nuvens apaziguadores, caso semelhantes as imagens repousantes que costumamos escolher para os fundos de tela dos nossos computadores, como compensação para as horas que passamos paralisados diante deles.

O exame da pesquisa poética de Rommulo, leva a concluir pelo seu caráter interdisciplinar e, junto com esse termo, chegam noções como sobreposição, justaposição, dobra, espelhamento, camadas, tudo quanto possa sugerir uma convivência complexa de sistemas de naturezas, funções e significados distintos, como arte e ciência, instalação e design, projeto e produto, matéria e imagem.

No âmbito da sua intrincada produção tridimensional, o artista oferece-nos um vasto conjunto de ambientes interpenetrados: cozinhas, escritórios, quartos de dormir, parques de diversões, bancos, supermercados; todo um repertório de espaços domésticos e equipamentos públicos embaralhados, trespassados, como submetidos a uma pressão violenta e súbita.

Como desvendou Baudrillard em seu O sistema de objetos, famílias de móveis e objetos articulam-se na constituição de ambientes que nada mais são que a ordem social de uma época devidamente materializada. A sintaxe de uma sala de jantar, de um play-ground ou de um quarto pode se estender em uma infinidade de componentes, dispositivos, ferramentas, objetos, nascidos da projetação contínua, do ritmo das descobertas e depurações de novos programas de necessidades, ou simplesmente das mudanças estilísticas que decorrem da moda e, consequentemente, da lógica implacável da obsolescência programada. Mesa, cadeiras, fogão, armários, pratos, copos, talheres, parede, ladrilho, fórmica, tijolos, piso vitrificado; cerca, estante, penduradores, tapete, madeira, metal, grama; cama, escrivaninha, guarda roupa, mesa de cabeceira, luminária, papel de parede, tapete etc, os objetos, arranjados numa sala, quarto, cozinha, vão se ajeitando, encontrando seu espaço, empilhando-se, engatando-se, guardando distâncias entre si de modo a salvaguardar os passos, trejeitos, poses e posições dos usuários, seus gestos e movimentos. São, por isso mesmo, antropomórficos, razão pela qual Roland Barthes defendia os objetos como “a assinatura do homem no mundo”.

Em lugar de se destruírem em virtude dos abalroamentos propostos pelo artista, ao invés deles restarem destroços e estilhaços, os ambientes atravessam-se para se reorganizarem em novas configurações, físicas e simbólicas. O resultado é semelhante as formidáveis colisões de placas tectônicas, as tensões de cisalhamento ensinadas aos alunos ingressantes do curso de Geologia; as forças inauditas que encrespam a superfície da terra ao longo de séculos e que depois adormecem sob a capa de chão e vegetação, fazendo-os esquecerem, ou sequer imaginarem, as furiosas tensões entranhadas.

Rommulo desfuncionaliza, inviabiliza os objetos afastando-os do design e fazendo-os rumar em direção à arte, uma aproximação reforçada pelo recurso a um excesso de estetização, expresso nessas cores intensas, exclusivamente primárias e complementares, aplicadas em superfícies laqueadas, reluzentes e irreais como maquetes eletrônicas. Maquetes que ele constrói na qualidade de etapa e produto de um processo rigorosamente calculado. O artista chega até elas como desdobramento de delicados desenhos executados digitalmente. E é justamente nesses projetos que reside o germe do seu singular raciocínio projetual: elaborados em camadas de folhas de papel transparente, primam pelo mesmo acabamento rigoroso dos objetos e também, como não poderia deixar de ser, pela mesma sorte de incongruências, incorreções, subversões da perspectiva geométrica, enfim, perturbações dos padrões de representação com os quais intervimos no mundo.

A série “Do espaço que eu vejo e percebo , há o plano”, que recebe o visitante, serve simultaneamente como introdução e coda da exposição. Em cada uma das peças que a compõe há sempre uma paisagem diurna, noturna, vegetal, rochosa, não importa, todas elas rigorosamente divididas por linhas finas pretas, como um caixilho assimétrico, um vitral/quebra-cabeças cujas unidades são formas quadrangulares, aparentado com as malhas racionais, as modelações paramétricas, biomiméticas e associativas que jogamos sobre o mundo. Os campos quadriláteros dividem-se entre aqueles que dão a ver a paisagem com nitidez e aqueles que a embaçam, apresentam-nas de foco, por efeito aparente de umidade, da troca de calor com o ambiente externo. Há, portanto, uma lógica bifurcada entre uma representação que dá a ver com clareza o mundo exterior, como se não houvesse anteparo e separação entre dentro e fora, e uma película que denuncia sua presença, como um efeito de linguagem que ao passo que dá a ver o mundo, dá-se a ver como fator de afastamento do mundo. A questão que se coloca, e que Rommulo nos apresenta de modo encantadoramente simples, é: haverá mundo fora da linguagem?

Trabalhando no corpo das representações, materializando-as, Rommulo Conceição, cientista e artista, demonstra a maleabilidade e as imponderabilidades daquilo que o senso comum tem na conta de exato, a maleabilidade e as imponderabilidades do ser.


Desmanche

Bruna Fetter, 2017

Entramos em 2017 com uma aguda desesperança. Não apenas no Brasil, mas em diferentes localidades do mundo, ecos de instabilidade e frustração ressoam alto. Tensões econômicas, democráticas, sociais e humanitárias nos remetem a passados que gostaríamos de já haver superado. Em nosso país, desfeita a euforia gerada por um momentâneo impulso econômico seguido de uma crise política, observamos o desmanche gradual de conquistas e direitos que imaginávamos garantidos há décadas.

Frente ao esfacelamento de instituições e crenças, o artista se move. E é este movimento que Rommulo Vieira Conceição apresenta na exposição Tudo que é sólido desmancha no ar.

A fragilidade a que o título remete também nomeia a série de 17 fotografias inéditas de céus, realizadas pelo artista durante suas viagens. Tais fotografias, impressas em chapas de inox, não são o único elemento imagético dessas obras. Sobre elas, desenhos de diferentes projetos já realizados pelo artista estão desfacelados. Portas, pias, paredes, cadeiras, canos, grades, janelas e mesmo uma gangorra — todos descontruídos — vagam livres em um ambiente sem gravidade. Ao mesmo tempo que a sensação de colapso é evidente, a violência desses imagens é amortizada pelas nuvens ao fundo.

A questão da virtualização da imagem é cara a Rommulo, que há anos se utiliza da tecnologia e da linguagem projetual arquitetônica para desenhar. Seus projetos são de tal forma idênticos aos trabalhos executados que ficamos em dúvida de qual seria a obra de fato. Um trompe l’oiel virtual, que parte da convicção de que o observador contemporâneo está preparado oticamente para compreender este código visual, projetivo. Ou seja, ler um 3D e enxergar, mesmo que mentalmente, sua respectiva materialização. No entanto, o que está em pauta agora é a desmaterialização. Ao despedaçar sólidas estruturas sobre diferentes imagens de céus, o artista potencializa a fragmentação de espaços e questiona a validade da perspectiva — interesses recorrentes em seus trabalhos — expondo a fragilidade de estruturas que supostamente deveriam sustentar as crenças a respeito do mundo que nos rodeia. Refletindo sobre um universo no qual a informação se concentra em algo tão etéreo quanto nuvens, o artista atrita as crenças e as certezas da atualidade, retomando questões elaboradas na modernidade e suas respectivas falências.

Na obra O espaço se torna lugar à medida que me familiarizo com ele (2017), primeiro vídeo produzido pelo artista, alocado e repetido em diferentes espaços da galeria, Rommulo também parte de vistas aéreas, do céu e das nuvens, mas aqui para caracterizar seus próprios deslocamentos. Fazendo uso do Google Earth Pro, aplicativo de uso simples e cotidiano, o artista novamente conta com o reconhecimento de tal código pelo público para articular paisagem, deslocamento, mapa, corpo, som. Assim, em diferentes localidades, o artista se posiciona no centro do quadro e, tal qual uma bússola, gira para os quatro pontos cardeais. Mapeando o lugar com seu próprio corpo, a cada nova fase do vídeo ele se encontra 12 passos mais afastado do observador, até desaparecer na grandiosidade de cada paisagem-vazio. Corpo que some, se consome pelas paisagens, se desmancha, enquanto o mapa aéreo no canto inferior direito da tela acompanha tal operação. No canto inferior esquerdo, o perfil da paisagem percorrida serve de inspiração para as composições originais que integram a trilha sonora do vídeo.

Esta obra, como a maioria dos trabalhos de Rommulo, fala do espaço. Não um espaço privado que se sobrepõe a outro, mas uma paisagem localizada e localizável por qualquer pessoa que se proponha a seguir as coordenadas geográficas anunciadas. A obra propõe participação, mas não a impõe. O visitante pode ou não se engajar, pode ou não acessar o QR Code e ser lançado para as nuvens de

informação, pode ou não reivindicar aquelas paisagens para si. Essa operação de aproximação/afastamento joga com noções da familiarização daquele corpo e do nosso olhar com cada uma das paisagens do vídeo que, aliás, está em processo aberto e seguirá crescendo pelo acréscimo de novas localidades enquanto o artista seguir interessado na proposição. A incerteza em relação a um desfecho para a obra remete à série de fotos, em suspensão, na iminência de uma queda.

Partindo da famosa frase de Karl Marx no Manifesto Comunista, de 1848: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas” —, a mostra apresenta ruínas da contemporaneidade para questionar ciclos históricos. O paradoxo apresentado por Rommulo nesta exposição gera um desconforto que cresce aos poucos, à medida que percorremos o conjunto das obras. A constante autocitação de obras existentes cria uma sensação de déjà vu, ao mesmo tempo que sua dissolução revoga uma promessa de futuro. Restam-nos rastros de um devir que ainda se espera possível.


Cartografias do provisório

Angélica de Moraes, 2013

Texto curatorial da exposição através, cuidadosamente, Prêmio FUNARTE de Arte Contemporânea

Há, por vezes, capilaridades entre fatos e pessoas que nos levam a conhecer algo ou alguém como resultado de um fio condutor de indagações anteriores. Ou há o acaso, o inusitado do momento, a exigir a decifração do convívio, do olhar mais de perto.

Essa lógica bifronte do encontro vale para a arte e para a vida. É algo na esfera do fascínio, gatilho que deflagra tanto a curiosidade do instante quanto a pesquisa do projeto. Por certo que é na região nebulosa onde se misturam essas razões e emoções que nos deixamos capturar pela obra de Rommulo Vieira Conceição, paradoxalmente tão rica em superfícies nítidas e arestas bem definidas.

Ao primeiro contato, podemos observar sutis desdobramentos (ou desconstruções) da tradição neoconcreta. Aqui, a quebra da radicalidade geométrica do concretismo não mais é feita pela introdução direta das questões do corpo mas, antes, pela sua intencional omissão.

O corpo, ausente explícito, comparece de modo fantasmal, oblíquo, potencializando a memória indelével aderida por ele às coisas do cotidiano de uma casa, entendida como código decifrador das existências que a habitam ou habitaram.

Esta é a primeira individual de Rommulo em São Paulo. Através, cuidadosamente é resultado do Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2012 e foi estruturada pela curadoria em torno de uma série de oito fotografias que dão nome à mostra.

Completa o conjunto as instalações Entre (2011) e Estruturas Dissipativas/Balanço, esta feita especialmente para a exposição. Todas as obras da mostra revelam o raciocínio espacial empregado pelo artista para semantizar a arquitetura interior das emoções. A peça central, tanto pelas dimensões quanto pelo seu protagonismo, Estruturas Dissipativas/ Balanço, denuncia de modo ainda mais eficaz a ausência flagrada nas imagens fotográficas do seu entorno. Nela, um vidro transparente e uma iluminação incidente sobre um fragmento do conjunto (uma cadeira), promovem a ilusão de ótica que, sozinha, esclarece toda a poética do artista. Iluminada por uma luz pontual (por uma atenção do interlocutor?) a cadeira na cor intensa de laranja, transpõe o vidro e se configura, imaterial mas totalmente visível, no outro lado. Como reflexo de um diálogo que encontrou seu lugar no outro.

Ainda na mesma peça, vemos um balanço a conjurar memórias de infância, talvez guardadas nas gavetas lilás. Ascensão pendular do brinquedo de criança que se transforma em ascensão vertical de adulto nos degraus da parede ao lado. Arquitetura onírica levando do sonho ao projeto. O conjunto é ancorado em torno de uma mesa, espaço mítico do alimento compartilhado e da troca de vivências.

A mesa articula a parede externa de tijolos e a parede interna de azulejos. É a membrana de respiração entre elas.

A janela, acesa em vermelho, esclarece que estamos falando o tempo todo em superfícies de observação, de atravessamento de olhares.

O eco dessas questões espaçocognitivas se dá na peça Entre. Também aí há o emprego de superfícies polidas, reflexivas (adjetivos ambíguos, aliás, que apontam características físicas de materiais ou tipos de comportamento humano). Há o uso das cores intensas, complementares. As lâminas de vidro, triplicadas e emolduradas para a ação de se abrir ao outro, refazem a simbologia do acesso a um espaço de encontro (entre), assinalado em vermelho vivo. Se quisermos, também remete ao olhar construído através de várias lentes sobrepostas, característica da fotografia.

Com sua série fotográfica, Rommulo investiga a visão panóptica, ou seja, aquele olhar totalizador que consegue abranger, de um único ponto de vista, toda a cena à sua frente. As imagens de espaços interiores, obtidas nos sóbrios estúdios finlandeses e na atmosfera carregada de memórias de um hotel na Argentina, nos provocam a reunir e interpretar indícios. Como aqueles deixados pelas duas toalhas penduradas nos cabides da sauna. Ou na meticulosa arrumação de ferramentas.

Rommulo se inscreve, com frescor e nitidez autoral, nas questões do unmonumental (1) que tem no artista alemão Manfred Pernice um de seus expoentes. Ou seja, na escultura e no objeto feitos em oposição aos critérios de monumentalidade e afirmação de certezas pétreas.

Rommulo reflete a fragmentação do entendimento de mundo deste século 21. Conforme já escrevi (2), porque “nossa noção de mundo não mais se estabelece pela narrativa ou pela análise lógica de causa e efeito, que herdamos da filosofia grega. Ela se faz do aqui e agora, da justaposição e da articulação possível, em determinado instante, de noções fragmentárias de um universo de informações cada vez mais expandido e mutável. Em cartografias do provisório”.

Notas

1. Unmonumental: The Object in the 21st Century. Catálogo de exposição no New Museum (NY), 2007. Phaidon Press.

2. Agora/Ágora: Criação e Transgressão em Rede. Catálogo de exposição no Santander Cultural de Porto Alegre, RS, 2011. Pág. 86.


Fragmentos do cotidiano

Bruna Fetter, 2013

Texto curatorial da exposição através, cuidadosamente, Prêmio FUNARTE de Arte Contemporânea

Planos que se sobrepõem e se cruzam. Eixos que, por vezes, se somam; outras, se anulam, dando a impressão de uma continuidade utópica buscada que não tem como se concretizar. Essa impossibilidade é o foco da obra. Para Rommulo Vieira Conceição tudo são camadas a serem desvendadas. Não fosse o impacto físico proporcionado pelos volumes de suas obras tridimensionais, seria o impacto visual das cores vibrantes que, na busca por seu tom complementar único, prendem o olhar e nos guiam através de superfícies brilhantes tão aparentemente corriqueiras quanto distantes e fugazes.

Impactos que podem ser observados nas obras da mostra Através, cuidadosamente, contemplada com o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2012. Nesta mostra, Estruturas Dissipativas / Balanço (2012), obra inédita feita especialmente para a mostra, é provavelmente o projeto mais ambicioso do artista até o momento.

Aqui, materiais comuns como – madeira, azulejos, ferro e vidro – remontam a uma casa impossível, não por sua escala, mas por suas superfícies absolutamente brilhantes. Os reflexos cuidadosamente projetados funcionam como um jogo de espelhos sem espelhos.

A artificialidade do ambiente se perpetua pela polidez dos planos e esvazia de presença humana essa junção de elementos arquitetônicos elementares. Fragmentos do cotidiano brincam com uma tradição concreta. O formalismo da peça proporciona ângulos inusitados, escadas que atravessam paredes, escritórios azulejados. A funcionalidade de cada parte cede ao incongruente do todo. A exceção talvez seja o balanço cor-de-rosa que, independente de pertencer ao resto da obra, nos convida a sentar e balançar, ativando memórias de outras épocas, trazendo vida ao que antes parecia congelado no tempo.

Não é em vão que o artista estabelece o título de Estrutura Dissipativa a essa obra.

Ilya Prigogine, prêmio Nobel de Química em 1977, descobriu que, em determinadas condições (sistemas abertos distantes de um ponto de equilíbrio), é possível a formação de estruturas de entropia, chamadas por ele de dissipativas. Tais estruturas se destacam por serem focos de auto-organização matérica: capturam energia e a devolvem de forma ordenada.

Se sistemas abertos são aqueles que trocam energia ou matéria com o meio exterior, nesta obra é justamente o balanço que proporciona essa permeabilidade. Ele é o elemento móvel e vivo que dá sentido ao resto, desequilibrando a polidez das superfícies e dos espectadores. É através dele que o reflexo do visitante é incorporado à obra como mais uma camada, uma dimensão virtualizada onde várias histórias se cruzam, como uma obra aberta de Umberto Eco. Essa peça assinala um nítido encaminhamento do artista para uma relação de maior abstração espacial. Algo que aprofunda o diálogo com a arquitetura, uma constante em sua poética. Em todas as obras da mostra (e mesmo em obras anteriores, com imagens incluídas nesta publicação), sejam elas planares ou tridimensionais, se faz presente a reflexão sobre o espaço habitado e habitável.

Assim também ocorre nas fotografias da série Através, cuidadosamente. Nelas – e sem recursos de montagem digital – é a escolha precisa de um ponto de observação único no espaço que nos permite compreender a relevância de cada conexão. Os planos, os móveis, uma fruteira, uma tábua de passar roupa, um interruptor, se sobrepõem, se cruzam. A banalidade do cotidiano se expõe. No entanto, o que aflora é uma percepção visual desde um ponto de vista exterior a esses ambientes, como se no dia-a-dia fosse impossível viver em todas essas camadas de intimidade de forma simultânea. A escolha pelo metacrilato, material no qual as fotografias foram cuidadosamente finalizadas, cumpre a função de reproduzir os reflexos das outras peças, assimilando o ambiente no qual o público se encontra e o próprio público.

Assim, entrar em contato com a produção de Rommulo Vieira Conceição é construir uma relação de troca, uma conversa que vai se aprofundando conforme se circula pelo espaço e se é capturado pelas obras, seus reflexos e os reflexos dos reflexos que, em cadeia, vão se formando ao olhar de um observador atento. levam a refletir sobre a capacidade do artista em capturar energias de diferentes situações e construir um universo poético tão potente quanto sedutor.

Prigogine notou que apenas sistemas abertos evoluiriam, condenando os fechados a um fim, mais próximo ou distante. O extremo ordenamento e a organização formal da obra de Rommulo levam a refletir sobre a capacidade do artista em capturar energias de diferentes situações e construir um universo poético tão potente quanto sedutor.