A pintura e a capacidade de transformar
Jean Lancri [Professor emérito da Université de Paris I; Autor de L´index montré du doigt- edit l´Harmattan, Paris, 2001 , O meio como Ponto Zero, e A parte de sombra da última obra de Maecel Duchamp, Editora da UFRGS, 2005 e 2020.]
Uma afirmação bem conhecida do pintor Georges Braque nos permite realizar uma reflexão sobre o trabalho pictórico de Eduardo Vieira da Cunha. Braque afirmava que para um pintor a arte não consiste na reconstituição de um fato, ou de uma história, mas na constituição de um fato pictórico. Mesmo que não cite este princípio, Vieira da Cunha o põe em prática em seu trabalho. O pintor soube fazer de um detalhe o sentido se seu trabalho. Em efeito, graças ao olhar- um olhar desenvolvido através da fotografia e, posteriormente, da pintura- Vieira da Cunha nos mostra em suas obras um trabalho de preelaboração da memória. Sua prática plástica, aliada à uma pesquisa séria, permite a articulação de diversos conceitos: a antropofagia, como noção metafórica do movimento moderno brasileiro de ato regenerador e criador, porque trata-se de um processo de apropriação; a utilização de ex-votos brasileiros; e a prática da fotografia- particularmente o trabalho de fotografia de autor desenvolvida pelo próprio artista, mas também de fotógrafos que ele admira, como Joseph Südek. O que levou o artista a esta relação? Uma reestruturação simbólica dos elementos do inconsciente. Tudo isto contribuindo para a constituição de uma obra pessoal dotada de uma grande densidade, preenchida com as cores do enigma.
O todo do trabalho, entretanto, não acontece sem o avanço de algumas hipóteses, sendo as mais fortes as que se situam na intercecção dos três campos considerados: ex-votos, fotografia e antropofagia.
Particularmente exemplar é o paralelo introduzido entre o processo fotográfico da revelação da imagem e a passagem dos ex-votos pela ‘sala de milagres’, expostos em sua pintura: a transferência do negativo ao positivo (no caso da fotografia) é comparado à cura (no caso dos ex-votos). De uma maneira geral, o interesse do trabalho do autor está na reflexão sobre a estética, especialmente sobre a estética da fotografia, dentro de um conjunto de questionamentos mais amplo, de ordem mais antropológica.
Para tanto, o artista soube se utilizar de um trabalho quase carnal de apropriações em seu trabalho pictórico; assim, a reflexão sobre o processo antropofágico com o processo fotográfico encontra-se confrontado com a leitura de obras de François Soulages e Philippe Dubois. Da mesma forma, a leitura dos textos de Marie-José Mondzain permite ao pintor uma tomada de consciência dos princípios teóricos e teológicos da encarnação e da eucaristia, relacionando-os com o canibalismo. De onde surge o seguinte questionamento: a fotografia deveria ser apercebida como um operador moderno da transubstanciação, porque ela possui a capacidade mágica de transformar.
Estas são as questões que suscitam a leitura das obras de Vieira da Cunha, onde a palavra-chave é transformação. Transformação da biografia em ato pictórico, do sujeito à imagem.