CALEIDOSCÓPICA
“Se não dispomos de uma inteligibilidade, temos que procurá-la”
Jorge Wagensberg
I
Há uma parte cada vez mais considerável do trabalho de Patricio Farías que se rege pelas antípodas de sua vocação mais reconhecida de escultor e de dimensões generosas, que se dimensiona em uma escala muito menor, às vezes microscópica, e talvez por isso, digna de olho clínico, apurado, de suma atenção. Ainda mais quando as nuances e inflexões de séries como a nova Reticulados (2020/2022) abrigam sua própria trama especular, uma armadilha ocular, já que são composições minimalistas, seriadas, com herança cinética incluída, “de bolso”, que respondem a uma geometria icônica – mais onírica e sonhadora como pedia o neoconcretismo brasileiro que sagrada lembrando de Rubem Valentim, dadas todas as diferenças.[1] Pois aqui as matrizes visuais não são de caráter religioso, são de outra procedência mais viva e ecumênica, da própria natureza, de matrizes, cromossomas, configurações derivadas, reencontradas. Uma abstração geométrica para ver de perto, onde o círculo, o quadrado, o polígono resgatam vibrações, ressonâncias de estruturas do mundo natural ou animal. Pascal já se abismou diante do universo, do mundo físico: “A natureza é uma esfera infinita, cujo centro está em todas partes e a circunferência em nenhuma”.
Até o ponto de que algumas peças, leiam-se as novas caixas miraculosas do artista, sempre um espaço compacto e mágico, são palco e maquete de construções encantatórias, evanescentes, cujo jogo de transparências e superposições consegue suspender o olhar, assim como desconfiar do que se vê. Sobretudo, porque nosso lugar como parte implicada, espectadora, participante, vive de uma dinâmica de movimento. Os trabalhos convocam nossa presença porque mudam com nossa mirada, perspectiva, passagem.[2] São parte de uma representação mutante, efêmera, contingente. Caleidoscópica, no sentido mais rico do termo, de variação, encaixe, dinâmica, miragem.
II
O ying-yang do artista entranham essas duas vertentes e escalas, de forma indissolúvel. Assim, as esculturas de figuras antropomórficas, já produzidas em ocasiões – destaque para a sátira da arte de Série Equipamentos (2005) – atingem agora em Mitológicos (esculturas, 2021) um ponto de configuração emblemática, de arquétipo e sinopse, quais peças maiúsculas de um xadrez imaginário onde o jogo é mais hermético, talvez trans-histórico, ainda sabendo da orientação visual pré-colombiana, sua matriz primeira. Ou tendo também na lembrança sua reflexão paralela das naturezas mortas morandianas (N.M., 2016) ou o balé de figuras protofuturistas representado em Molas málicas (2000).
Mitológicos (desenhos, 2021/2022), como a coleção de naipes de um baralho, é um bestiário de animais imaginários mitológicos, que, partindo de origens denotativamente pré-hispânicos, chega a outra abstração mais livre.[3] Assim, desta origem, se dá outro passo que nossos antepassados pré-históricos deram: a simplificação do essencial. Assim como in illo tempore das formas planas (leia-se, registros das cavernas pré-históricas) chegava-se à tridimensionalidade – um processo praticado por Patricio Farías de diversas formas –, aqui é realizado o salto desde os desenhos para as esculturas, como já fizera naquela peça de Duchamp, Le Grand Verre (1998/2011), em que o artista desdobrava seu plano interior originário para uma grande instalação, uma característica mutação de dimensões.
Se a desmitificação profana da idolatria visual, da semântica adquirida pela iconografia contemporânea percorre uma dúvida feroz, corrosiva, cética, quando não niilista, no sentido mais grego do termo, aqui acontece por via dupla: há uma optometria à prova, um jogo de implicação e adivinhança do que vemos (e em tempos cuja história está em negativo, pura dúvida ou fakeada). Pois Reticulados garante seu próprio assombro e perplexidade, e até certa fantasmagoria em seu rigor, já que é uma semáfora de sinais, que no lugar de traduzir ou ilustrar, enigmatiza, se retroalimenta no mistério a olhos vista, pois seu código permanece aberto, transparente, vibrando em sua viva luz, quais pequenas mandalas autossuficientes em sua trama e variação. E a outra série de trabalhos, Mitológicos, os desenhos de inspiração pré-colombiana, aparenta ser coleção de cartas simbólicas, que parecem também gravuras – e que se inscreveriam em outra órbita cultural – até prodigada em algumas proximidades por Xul Solar e sua estética metafísica.
De fato, no DNA gráfico de Patricio Farías cabe salientar em sintonia uma oportuna referência dupla: as peças feitas com band-aids ou a coleção de minigravuras falsas, pois ambas, configuradas com um inequívoco tom irônico, quais charadas visuais, entregam, paradoxalmente, algo mais que sua inocente ou pacífica visualidade. Sempre composições que jogam com sua própria identidade/alteridade. E não é essa circunstância imagética, detalhe de rodapé e sim condição crítica dessa poética, que joga com a arte com suas próprias armas, a mentira como verdade e jogo da arte, algo que se estende a numerosas obras escultóricas, instalações, vídeos, edições.
III
O rebobinado imagético de Patricio Farías sempre tem algo de parabólico, de redescobrimento do sentido estético em um além trazido para o aquém. Tudo é trabalho intuitivo das formas, a relação de uma realidade com outra, de invenção cultural independente. Há uma compressão visual em ambos trabalhos apresentados, aumentando sua compreensão energética e semântica, seu minimal expressivo atinge ao máximo compartido: austeridade, síntese, manufatura em peças que exalam simetria, harmonia, ritmo, com sua chave de humor própria, para abrir a fechadura das imagens. Aliás, no caso do artista chileno, rigor e humor nunca são instâncias antípodas e sim combinatórias.
Adolfo Montejo Navas/Agosto de 2022
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[1]Configurações mais próximas e contemporâneas são as tramas gráficas de Chiyoko Szlavnics ou de Odires Mlászho.
[2] Algo que a fotografia dificilmente captura, daí a necessidades de ter filmes em código Q para o registro: um lado nebuloso que agora se apoiará na nuvem eletrônica, se não estamos vendo in situ.
[3]Da mesma remota arqueologia, mistura de bichos e seres imaginários, encontra-se a série de desenhos Sem título (2005), também símbolos/logos.