Quietude

Pinturas de Cris Rocha Ioschpe

 

Ocre Galeria

Porto Alegre, setembro 2024

 

Com emoção, Cris apresenta sua pintura em Porto Alegre justo quando a  cidade se recupera do grave desastre climático que atingiu o Rio Grande do Sul e a artista se refaz da perda de seu pai. Na mostra, paisagens. O tema alude às dunas e banhados do Taim, reserva ecológica que frequentou na juventude a caminho de Punta del Este e ao litoral norte de São Paulo cujas praias tem a serra do Mar como moldura e onde hoje ela possuiu uma morada.

Em seus quadros, a natureza se apresenta como referência primordial, como resíduo arcaico de um tempo mítico. As vistas trabalhadas pela memória ressurgem nas telas após lenta maturação. Não há pressa nesse trabalho, apenas expectativa do que está por vir. O lento movimento de vai-e vem do pincel vai produzindo ondulações que sugerem montanhas e banhados e, por vezes, ilhas e baías de águas calmas. Embora haja afinidade temática – relevo e água – nessa mostra, estamos diante de duas séries de obras: Taim e Serra do mar. São dois tempos, duas vivências e duas expressões pictóricas sutilmente distintas.

Quem conhece o percuso de Cris Ioschpe sabe que muito do que se vê em seus quadros já aparecia na gravura, fundamento de seu trabalho artístico. Me refiro à forma aberta, à fluidez do traço já presentes nas séries Matos e Água.  A propósito, foi com Maria Tomaselli, nos idos dos anos de 1980 que Cris começou a gravar e foi na convivência com Iberê Camargo que  compreendeu a importância da disciplina que a gravação em metal exige. Em São Paulo desde 2000, a artista mantém um ateliê onde grava e imprime suas gravuras e, eventualmente, as de colegas e alunos.

Paralelamente, vem pintando. Nos últimos anos, esteve próxima a Paulo Pasta, frequentando seu curso no Instituto Tomie Ohtake. Com essa bagagem chegou a uma pintura singular, num contexto em que a pintura de paisagens, surpreendentemente, atrai não poucos artistas contemporâneos.  A sobrevivência  desse gênero – considerado menor, na Academia – se deu com a introdução da pintura plein-air que, contrariando as normas acadêmicas deu início ao modernismo em meados do século 19. Hoje, a pintura de paisagem denota saudade da natureza tal como conhecida na infância ou mesmo intocada como sonharam os românticos. Essa nostalgia surgiu como reação à revolução industrial e aos danos provocados pela exploração intensiva dos recursos naturais. O sentimento de perda da inocência explicaria certa melancolia subjacente a muitas dessas pinturas, tanto antigas quanto atuais.

A rebeldia dos paisagistas, contra o academismo e contra os males da industrialização, propociou maior autonomia a esses artistas. Logo eles estariam pintando por conta própria, sem ter que se submeter aos cânones acadêmicos nem satisfazer o gosto oficial. É verdade que a vida financeira desses artistas ficou mais difícil, mas a arte ganhou em liberdade. A implosão dos tradicionais esquemas cromáticos deu lugar à captação dos efeitos luminosos ao ar livre. Simultaneamente, a construção pictórica passou a revelar os toques do pincel, procedimento até então inadimissível. Assim, a pintura de paisagem abriu caminho para a arte moderna com consequências altamente disruptoras, tais como a desconstrução do objeto e a abstração.

No Brasil, o processo de ruptura não foi diferente do ocorrido na Europa, apenas tardio. Começou com o afastamento do pintor alemão George Grimm, então professor da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, por estimular seus alunos a abandonarem a pintura de ateliê pela pintura de paisagem em campo aberto. O professor deixou a Academia mas levou consigo um grupo de alunos, entre eles, Castagneto e Parreiras. Desse confronto a Escola de Belas Artes nunca se recuperou. Com algum atraso em relação ao centros artísticos europeus e norteamericano, a arte moderna acabou por se impor no meio brasileiro chegando também ao abstracionismo, em meados do século 20. Na atualidade, o retorno da pintura de paisagens deriva como no passado de certo saudosimo, desta vez ligado à consciência dos desastres ecológicos produzidos pela civilização industrial que põem em risco a vida no planeta.

Em suas pinturas, Cris parte de naturezas-mortas e evolui para as paisagens. Na série Taim constrói com gestos e pinceladas generosas o que pode ser lido como montanhas baixas e alagados.  As paisagens se apresentam como recortes de um contexto mais amplo.  Embora as telas não cheguem a grandes dimensões, a pintura all over passa a sensação de continuídade para além do quadro o que lhe dá grandeza. O esquema cromático pautado na gama dos azuis, roxos e verdes deriva das suas naturezas-mortas nas quais se pressente a afinidade com os tons baixos e dramáticos das garrafas pintadas por Iberê nos idos de 19… Borrados os limites entre céu, terra e água, indefinindo o horizonte, a pintura desobriga a identificação do lugar que a inspirou e  enfatiza a percepção sensível da natureza. É uma pintura desprovida de narrativa, silenciosa.

Na série mais recente, a inspiração advém da Serra do mar cujo  relevo abrupto recorta o litoral paulista. Essa circunstância determina uma abordagem pictórica mais incisiva, contornos mais definidos e um cromatismo menos sombrio. Nesses quadros, é notável a incidência da luminosidade tropical nos verdes amarronados das matas e nos azuis esverdeados das águas penetradas pela luz. Essa pintura se aproxima do desenho, na medida que os limites entre céu, terra e mar se tornam mais nítidos. Como na série anterior, não importa precisar o local referido em cada quadro. O que interessa é a emoção que a pintura/paisagem transmite e é na quietude da observação que ela nos toca.

Maria Alice Milliet

Sobre a artista 
Cris Ioschpe, nascida em Porto Alegre em 1967, é uma artista plástica que vive e trabalha em São Paulo desde 2000. Formada em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1992, desenvolveu sua prática artística inicialmente estudando pintura e gravura com mestres como Maria Tomaselli, Anico Herskovits, Paulo Pasta, e Claudio Mubarac. Na década de 1990, Cris expandiu sua formação vivendo em Buenos Aires e Porto Alegre, onde trabalhou no Museo del Grabado e na Fundação Iberê Camargo, com assistência de Eduardo Haesbaert.
Com seu ateliê em São Paulo, continuou a se aperfeiçoar sob a orientação de Evandro Carlos Jardim e Ernesto Bonato, e participou de diversos projetos de gravura, incluindo o “Projeto Lambe-lambe”. Além de coordenar workshops de gravura no SESC Pompeia e oficinas na Chapel School.
Cris tem um extenso currículo de exposições individuais e coletivas, destacando-se “Passos que imaginei” na Galeria Gravura em 2000, “Funil” na Galeria Bolsa de Arte em 2004 em Porto Alegre e “da gravura e além” na Galeria Arteedições em 2017 em São Paulo. Suas obras integram coleções públicas em instituições de prestígio, como a Bibliotheca Alexandrina, o Museo del Grabado em Buenos Aires, e diversos museus no Brasil, incluindo o Museu de Arte Contemporânea do RS e o Museu Nacional de Belas Artes.
Foto @leticiaremiao