Há um ano, em um momento nada favorável para a cultura no Brasil, em um contexto de estagnação da atividade econômica, após três anos de pandemia por coronavírus, surgia a Ocre Galeria. Nem a crise econômica, nem as incertezas do futuro impediram que os artistas plásticos Félix Bressan e Nelson Wilbert, ao lado da administradora Mara Prates, abrissem uma galeria de arte com foco na produção contemporânea e na comercialização e divulgação da arte brasileira, com especial destaque para artistas de trajetória longeva e emergentes. Inaugurada em maio de 2022, o empreendimento cultural localizado na rua Demétrio Ribeiro, 535, no Centro Histórico de Porto Alegre, disponibiliza um amplo acervo de artistas representados e um acervo on-line com obras selecionadas. Tem sido palco de importantes exposições, encontros sobre arte, ou da simples fruição, talvez a finalidade maior do fazer artístico. Para consolidar seu primeiro ano de atividades ininterruptas, a Ocre Galeria inaugura, neste sábado, dia 6, às 11h, a exposição “Pintura Pensamento”, reunindo dois nomes de grande destaque na arte contemporânea brasileira, o gaúcho Frantz e o pernambucano (radicado em São Paulo) Manoel Veiga. A mostra fica em cartaz até 27 de maio.

Mas o que aproxima estes dois artistas de trajetórias e regiões geográficas distintas, além do fato de serem contemporâneos, de cultivarem uma amizade de longa data e do interesse em comum pelo processo artístico, mais que, efetivamente, a execução? Para Manoel Veiga, independente do resultado formal, existe uma aproximação com a pintura que é muito mais conceitual. Ao se considerar a proposta estética de Frantz e de Veiga, é possível estabelecer um ponto de convergência entre a produção artística destes artistas: ambos tencionam os limites entre “o que é” e “o que não é pintura”, abrindo espaço para uma arte feita de probabilidades. “Somos artistas que trabalham com a cultura da não ação. Os fenômenos agem e a gente os seleciona”, arrisca Frantz, e provoca: “o que me interessa são os limites que esta proposta tenciona de ser ou não ser pintura”.

Por mais paradoxal que pareça, tanto Frantz como Manoel Veiga são pintores que não pintam, pelo menos não da maneira como se entende a pintura – o contato do pincel ou da espátula sobre uma superfície de lona, papel, tela ou uma parede. Todavia, Frantz já pintou. O crítico e historiador da arte, pesquisador, professor e jornalista, Francisco Dalcol, na obra “Frantz – Também e ainda Pintura” (Margs) relembra: “Isso foi no começo dos anos 1980, quando, ainda jovem, despontou no circuito artístico local, logo se projetando também para fora do RS, em um momento histórico em que a pintura, frente à sua longa tradição e suas mortes continuamente anunciadas, era reabilitada por um renovado interesse pela pesquisa de seus meios e linguagem”. Frantz foi um dos protagonistas deste momento, assim como Manoel Veiga, cada um em seu tempo distinto.

Segundo Dalcol, as obras de Frantz resultam dos procedimentos de apropriação dos pisos de ateliês de artistas que ele forra com grandes extensões de lona. “Essas coberturas permanecem nestes espaços de trabalho durante anos, por vezes décadas, recebendo resíduos de todo tipo que nelas se depositam. Quando Frantz decide retirar os forros, os acúmulos de tinta e sujeira lhe surgem como possibilidades, que a partir do seu processo de apropriação, enquadramento e montagem, permitem-lhe identificar e nomear as superfícies como pintura”, explica o crítico.

“Meu trabalho de criação começa quando eu escolho o lugar em que vou trabalhar. Trata-se de definir que espaço me interessa. Eu não mexo na cena, mas atuo como um editor das imagens. É pintura, porque é tela, tem intenção de meio e fim”, afirma. Para o artista, interessa-lhe os limites que este processo tenciona de ser ou não ser pintura.

Também questionando os limites da pintura, temos a potente produção de Manoel Veiga. Em suas obras, o artista, que é engenheiro eletrônico de formação, trabalha com probabilidades estéticas a partir de conceitos da física e da química. Nas pinturas sobre tela ou papel, fenômenos da natureza, como difusão, gravidade, capilaridade, entre outros, são utilizados como ferramentas de construção, num procedimento técnico bem estruturado, mas que contém certa medida de acaso. Há pouco uso do pincel e o direcionamento do fluxo de tinta é feito de forma indireta. A fixação desses pigmentos sobre a tela gera a imagem de um novo espaço, facilmente associado ao natural, uma vez que a técnica desenvolvida inclui os mesmos fenômenos usados pela natureza. “Não há aqui a tradicional metáfora para o mundo natural, mas um curto-circuito de significados. Através desses fluxos reais de cor temos uma experiência indissociável de espaço e tempo”, ressalta.

“Eu conduzo a pintura de uma maneira mental; não tem ação física. Eu não uso o pincel, a não ser para depositar a tinta na tela; na sequência, uso um pulverizador de água, que direciona a tinta de forma indireta. O trabalho começa com a seleção de pigmentos; cada cor é formada por um pigmento diferente; dependendo das propriedades deste pigmento, tamanho, densidade, formato, este pigmento vai se deslocar de uma maneira específica na tela, são questões de dinâmica dos fluidos”, detalha Manoel Veiga. “É uma apropriação destes fenômenos, transformados em ferramenta de pintura”, sintetiza. Em lugar de representar natureza, Veiga trabalha com ela para imaginar novas configurações de espaço e tempo.

Ao longo de seu trabalho como artista visual as conexões entre arte e ciência estiveram sempre presentes, tanto em seu aspecto conceitual quanto prático/construtivo. Por meio da pintura e da fotografia, Manoel Veiga vem explorando as noções de espaço e tempo, gerando novas relações e cruzamentos entre suas formas de representação nos dois campos. Isso o levou a um contato constante com físicos e matemáticos de vários países, culminando recentemente na criação de uma plataforma internacional de colaboração, financiada pela National Science Foundation (EUA) e pelo Isaac Newton Institute (Cambridge, Inglaterra), sendo o artista membro do seu comitê gestor.

Segundo a professora Heloísa Espada, “sua arte é uma espécie de laboratório, onde é possível manipular leis da natureza que regem o cotidiano e a relação das pessoas com o tempo, escolhas pessoais e aquilo que acontece à revelia dos desejos, como o envelhecimento dos corpos e a movimentação de matérias diversas no espaço”. Heloísa realizou a curadoria da recente exposição de Manoel Veiga no MAC-USP, encerrada em janeiro deste ano, em São Paulo.

Em “Pintura Pensamento”, Frantz evidencia, pela primeira vez, o lugar de procedência das obras em exibição. A série foi produzida a partir das várias lonas que forraram o piso do ateliê de Manoel Veiga, ao longo dos últimos 13 anos. Ele apresentará uma instalação e telas de diversos tamanhos. Manoel Veiga exibe nove pinturas: seis trabalhos em acrílica sobre papel (70x50cm), dois trabalhos em acrílica sobre tela (150x80cm) e um trabalho em acrílica sobre tela (180x105cm), todas produzidas neste ano. Em suas provocações, Frantz e Manoel Veiga permitem uma reflexão sobre o campo expandido da pintura. O público terá a chance de renovar e ampliar seu entendimento e experiências sobre o fazer e o pensar em torno dos limites da pintura.

@asilviamaraabreu

Assessoria de Imprensa:

Sílvia Abreu (MTB 8679-4) | 24/04/23

A contingência do sensível: difusão, gravidade, capilaridade, curto-circuito, choque de significados, fluxos de cor – corpo, espaço, tempo. O sensível está na essência daquilo o que somos. Como seres que captam coisas através dos sentidos (entes que espelham outros entes) nossas projeções ajudam a desvendar os horizontes da natureza que partilhamos. O trabalho do artista tem início, justamente, na exploração destes horizontes – diligência, exame, isolamento, acaso, contraventamentos, desvios, retomadas, direcionamentos indiretos. Tudo pode começar desambiciosamente, mas a evolução natural do processo se dará de modo meticuloso, com arrumações, rearranjos, suscetibilidades, escrúpulos e ideações que serão examinadas de muito perto; às vezes até a beira da improdutividade – aciesia processual, esterilidade ritual. O início do estado criativo é, muitas vezes, uma luta contra a estagnação – o decesso precede a germinação e o grão da obra deve ser cuidadosamente semeado. O trabalho começa asfixiado, na sensação de estranheza do corpo, do tempo, do espaço: algo está faltando. Mas há insistência; e a obra prossegue em um processo orgânico até que alguma coisa comece a se desenvolver: há então germinação, amadurecimento no escuro, brotação, nascimento e, com sorte, floração. Algo se eleva, uma substância é expelida, projeção; vem uma embriaguez, introjeção: ouve-se na cabeça (depois sente-se no corpo) uma nova linguagem que abafa todas as outras línguas. Ascensão e rompimento: alguma coisa foi inaugurada; a arquitetura da obra se liberta e quando sua estrutura finalmente se revela, é possível perceber que algo de ignoto esteve agindo desde os primeiros movimentos, algo de incógnito que, em germe, já conduzia o pensamento nas primeiras dúvidas, nos primeiros assombros, nas mais pobres das notas iniciais de intuição criativa. Intenção de meio e de fim, desatrelamento, repartição: a obra, agora autônoma, se desprende do artista e exige mais comparticipação – ciente, ela mesma, de que o momento de sua apresentação é uma das instâncias possíveis de compartilhamento do sensível. Interrogação, fragmentação, processamento, solicitação: o sensível é tão necessário para nosso relacionamento com o que nos circunda, que sem ele não poderíamos nem mesmo ser pensados como existentes. Há algo em comum em qualquer obra, em qualquer imagem, em qualquer poema que porventura nos alcance – algo que, uma vez constatado, expõe as limitações do esforço que fazemos para estabelecer o que chamamos de racionalidade e revela as lacunas estruturais de uma tentativa de entendimento da realidade baseada majoritariamente nos códigos da comunicação linguística. Tendemos para o sensível. Procuramos um estado surgido da imagem, da obra; uma força germinativa fora da língua que nos capacite a circular pela topologia de continuidade intercambiável que une o fim e o início – dimensão da irredutibilidade da sensibilidade em relação ao lugar da percepção. Mas, o sensível existe, antes de tudo, fora de nós, de nossa consciência; a obra está no espaço infinito no qual se localizam e se movem os astros, na atmosfera que envolve nosso planeta, na extensão das faces de nossos corpos, na área reflexiva de nossos espelhos. Em última instância, o relacionamento do humano com o sensível se dá a posteriori. Nos nutrimos de imagens, de palavras, de ideias; projetamos conceitos simbólicos e experiências sensoriais, mas a gênese do sensível não tem base nos fenômenos mentais, emocionais ou da psique – excipiente de toda experiência imaginativa, cognitiva ou psicológica, a arte traz conceitos simbólicos simultaneamente consistentes e parafactuais. E o que o sensível reverbera, em última instância, é algo que se gera fora de nós, mas que – apesar de não ter natureza necessariamente relacionada com a parte imaterial que também nos conforma – é capaz de oferecer informação e dar contornos anímicos para nossas determinações, anseios, desejos, paixões, inteligências e perceptibilidades. Imagem velada e desvelada, movimento suspenso e restituído: não há o que obstar; é dos estímulos sensíveis e da imaginação que parte o impulso criativo – e a criatividade está para a sensibilidade como a linguagem está para a razão analítica. Imagem e palavra, inteligibilidade e sensibilidade se opõem entre duas transcendências e abrem uma passagem – e nossa consciência do instante quiçá nada mais seja do que a percepção fugaz da inserção, no tempo, desta passagem. Duração que não tem começo e nem cessação, nascimento sem genitor: as imagens estão ligadas à elaboração poética e à presença ou intervenção do subjetivo; suas resenhas são simbólicas e precisam ser captadas pela sensibilidade; suas expressões não são explicativas, mas umbráteis e metafóricas; suas personificações, assim como as do mito, não são alegóricas, mas sim tautegóricas – não referem a algo diferente delas mesmas e somente expressam o que elas em verdade são. Em definitivo, o sensível evidencia nossas origens – mas não se configura como tentativa de fazer qualquer juízo ou interpretação da existência. Como um manancial de expressão daquilo o que somos, a obra de arte é a possibilidade mais palpável que temos de obter alguma espécie de manifestação da condição original que nos anima. Mas, para experienciar tal eventualidade, é preciso ir dentro de sua matéria, se afogar no sensível e compreender a obra por dentro – sem esquecer que os pensamentos, por vezes, nascem do toque; e que a habilidade do artista contém, invariavelmente, um aspecto espiritual. De fato, quando trabalha a matéria, o artista libera seu pensamento; o espírito não é o oposto do corpo, mas pode se libertar dele e se tornar volátil. Há uma conexão invisível, uma passagem não aparente entre as coisas e alguma identidade não discernível. A imagem não possui identidade, não representa coisa alguma, não figura ninguém em lugar nenhum; e sua instauração não semelha ser mais do que a emoção da persistência da iminência – que é, também, uma possibilidade de suspensão momentânea da realidade. Absorção das contradições, nução do vazio eviterno, consentimento à direção impassível do tempo: o que a obra de arte testemunha é a queda, é a atmosfera rarefeita em volta de nós, é a memória que esquecemos ou que distorcemos, é a palavra que não encontramos, é a voz que abafamos, é o olhar que desviamos. Nada mais distante, nada mais próximo; e também nada a se oferecer embargo pois, ao final, somente o que o sensível parece ter o condão de nos revelar é que nossa existência – com sua historicidade, com sua imanência temporal e finita – paradoxalmente se projeta numa transcendência que nos ultrapassa. A arte nos tira de nós ao mesmo tempo em que faz com que nos encontremos; e esta saída de si para voltar a si – intercâmbio entre o dentro e o fora, entre o próximo e o distante, entre o agora e o outrora – é o estado de deriva em que resguardamos nossa intuição: a contingência do sensível.

André Severo