O traçado do indizível: esboço, escorço, estampa, figura, ilustração, imagem, desenho – algumas das nomenclaturas do sensível. O sensível está no instante; e toda imagem, mesmo a mais elementar, se configura como uma ontologia. Isto significa que, independentemente da maneira como se manifeste, o sensível revela exatamente aquilo o que é no instante em que está sendo – e ao fazê-lo, funda uma linguagem, cria (ou recria) uma realidade. Mas certas realidades não podem ser enunciadas: certas ocorrências estão na fronteira do dizível e são compostas justamente por aquilo o que a linguagem não expressa – aquilo o que a fala não pode dizer. Toda criação poética se inicia como uma contração violenta e involuntária na linguagem; e, no limite, qualquer ato de instauração artística – sobretudo quando se liga à imagem – consiste no descuramento da palavra. Ainda assim, o que se mostra na imagem não é o silêncio. O silêncio, por definição, é a condição do que não diz; entretanto, no sensível – que sempre deixa em suspenso aquilo o que a linguagem silencia – parece ocorrer algo ainda mais inflexível, pois o silêncio deixa, efetivamente, de ser ausência – deixa de não dizer – e passa a enunciar de outra(s) forma(s). Espaço fulgural sem começo nem fim, terreno de instável topologia moebiana: no sensível não há palavra original, tempo primordial ou lugar inaugural; e cada imagem, cada traço, cada figura, cada paisagem torna-se a metáfora de outra imagem, de outro traço, de outra figura, de outra paisagem; essas, por sua vez, são também metáforas de ainda mais distintas imagens, de ainda mais diferentes traços, de ainda mais dessemelhantes figuras, de ainda mais variadas paisagens – seguindo em um ciclo infinito de vinculações, desvinculações e re-vinculações poéticas. Em certo sentido, se poderia dizer que no sensível, onde o tempo e o espaço são reversíveis, tudo aquilo o que nos alcança são espelhamentos de espelhamentos. Ou seja, na imagem todas as realidades que inventamos, tudo aquilo que sentimos, vemos, ouvimos, provamos, cheiramos e pensamos, são também as coisas que nos inventam, que nos sentem, que nos veem, que nos ouvem, que nos provam e que nos pensam. Tradução e representação, aparecimentos e desaparecimentos instantâneos: todo poeta sabe que no sensível cada sopro de instauração da obra é um convite ao diálogo, é a criação de uma realidade diferente – única e plena. Delineação de contornos: o artista se ouve e se vê em toda parte: o mundo é seu espelho, é onde ele se enxerga e se projeta – mas é também onde erige as personas com que se identifica, é onde esboça os labirintos nos quais se perde. Disposição do desenho, ordenação geral de um quadro: no traçado do sensível as figuras repousam sobre si mesmas, as paisagens assentam-se em sua realidade e os traços, as manchas, as figuras, as abstrações tornam-se realidades insopitáveis. Quando nos confrontam, estas realidades não se oferecem somente aos olhos, mas também ao tato, aos ouvidos, ao olfato – mas nunca ao pensamento. Não pensar: ver, ouvir, sentir – fazer da experiência com a imagem sempre uma possibilidade de transcendência. De fato, no desenho do sensível, as coisas que nos são apresentadas – sempre em estado de iminência – invariavelmente nos revelam algo (sem, de fato, revelar nada) e denunciam o vazio dos nomes, a mudez essencial da linguagem, a falta de parâmetros para nos relacionarmos com o mundo e com a realidade. No sensível, cada obra, cada uma das realidades que erigimos e nas quais nos escondemos (quiçá somente para tentarmos nos encontrar), é única – é uma fração parafactual do mundo e jamais sua tradução ou seu símbolo. Por isso, expor-se ao sensível, enxergá-lo de verdade, deixar-se suspender pela imagem, equivale muitas vezes a uma perda momentânea da razão: perder referências, esquecer nomes, dissolverse em excesso. Expor-se ao sensível é retornar ao mundo anterior à linguagem, tornar-se analfabeto, confrontar-se com uma realidade indizível. Talvez por isso, a realidade que o sensível revela – uma realidade visível apenas pela anulação do acordo da linguagem – pode ser, efetivamente, ominosa. Ao mesmo tempo, sem a visão desta realidade (paraconsistente, não factual) corremos o risco de nos afogarmos – de maneira concreta e não metafórica – no oceano turvo da linguagem. O sensível nos nutre e nos avassala; nos dá a imagem, mas nos tira a palavra; nos condena ao silêncio, mas promove, em contrapartida, o iminente e a revelação. Não há o que obstar; entretanto, a percepção do sensível – que nunca é mais do que um vislumbre, pois uma exposição prolongada ao iminente seria sem dúvida insuportável –, paradoxalmente nos faz perceber que nossa relação com o mundo se estabelece para muito além de suas propriedades inteligíveis. Não há fundo, buraco ou falha, nada é impassível, abominável, impenetrável e o outro lado (fração parafactual do real) é uma superfície reversível e admirável – mas ao mesmo tempo inconsistente e impenetrável. A realidade do sensível compõe-se em uma trama de figuras, paisagens, sons, presenças, manchas, rascunhos, sugestões, poesias, representações e revelações: a imagem é uma aparição e diante dela perdemos nossas referências mais arraigadas. Manifestação súbita, presença momentânea, visão: em nosso primeiro encontro com a aparição hesitamos entre avançar e retroceder e nos sentimos paralisados pela natureza contraditória de nossos próprios sentimentos. Estranheza total: aquelas figuras, aqueles lugares, aquelas visões nos desestabilizam, nos causam repulsa e, ao mesmo tempo, nos seduzem. Nunca havíamos visto aquelas pessoas, certamente nunca estivemos naquelas paisagens e, no entanto, elas nos são absolutamente familiares e parecem emergir de nossas memórias mais remotas. Nada mais estrangeiro, nada mais nosso. O sensível nos suspende, nos coloca em distinção de iminência: diante de nós um outro lugar, um outro corpo; mas, estranhamente, é somente nesse lugar que é outro, no encontro com este corpo que não é o nosso – e que ainda assim nos espelha – que podemos perceber e nos encontrar para, afinal, sermos nós mesmos. No desenho do sensível não há mais eu, não há mais outro, não há mais aqui ou ali; tudo se faz presente e iminente ao nos oferecer a possibilidade de reintegração da origem com o originado, do todo com a parte: o traçado do indizível.

André Severo