Entre fios e ecologia: o enleio natural de Nara Guichon

Paula Ramos [crítica de arte, professora e pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul | catálogo When the sea was a forest ]

Nara Guichon lembra que tinha quatro anos de idade quando se aproximou, pela primeira vez, de novelos de lã e de agulhas para tricô; o encontro foi tão genuíno que, aos nove, produziu e vendeu sua primeria peça. Ela também recorda que, por volta dos dez, ajudando a avó no jardim e vendo-a queimar folhas, sentia que algo, ali, definitivamente não estava certo. O fato é que as práticas manuais e uma certa intuição ambiental a invocaram desde cedo, e ela acatou o chamado, encontrando no tricô, no bordado e na costura não apenas sua forma de expressão, como sua profissão. Começou tricotando peças que subvertiam os pontos e os padrões, associando a técnica ao patchwork, inserindo retalhos de tecelagem e mesclas com crochê. Na sequência, voltou-se ao tear manual, depurando os fios e produzindo artefatos em design que utilizavam algodão orgânico, sementes, cascas e miçangas de coco e, principalmente, redes de pesca descartadas, algo de seu próprio habitat.

A região em que Nara mora, no sul da ilha de Santa Catarina, é conhecida pela atividade pesqueira tradicional. Foi em 1998, vendo não apenas o lixo que chegava à praia, trazido pelas correntes marítimas, mas também centenas de redes de pesca de poliamida desgastadas pelo uso e abandonadas junto ao mar, como entulho, que ela esolveu se apropriar desse material, convertendo a energia do que estava reservado ao monturo e dando-lhe novos usos.

Desenvolvido naqueles idos, o processo de transmutação se mantém: acurada lavagem usando apenas água, depuração e corte das redes, uso de técnicas de oxidação e pigmentação natural. Nesse decurso, adota pó de ferro, fogo, água, terra e, claro, tempo; também recorre às ervas, às flores e às cascas de vegetais da mata, utilizando corantes naturais extraídos de plantas como erva-mate, urucum, crajiru e pau-Brasil, árvore nativa da Mata Atlântica e que, como sabemos, não apenas assinalou o primeiro ciclo econômico extrativista do país, como lhe conferiu o próprio nome.

Em muitas das peças desenvolvidas em seu ateliê, além das supracitadas redes de pesca e das plantas diversas para tingimento, Nara Guichon também usa sobras de algodão e outras fibras naturais rejeitadas pela indústria têxtil e da moda. Além disso, desenvolve trabalhos em “ecoprint”, a impressão botânica, a partir de plantas locais. Seu norte é o reaproveitamento, a sustentabilidade, o consumo consciente e ético, a valorização do sabe artesanal, o respeito ao meio ambiente.

Nesse ínterim, um dos projetos mais importantes para a artista, designer e ambientalista é o Águas limpas, que articula o uso das redes de pesca descartadas, matéria responsável por cerca de 10% da poluição mundial dos oceanos, à recuperação da mata nativa. Materializado em sacolas e esponjas para limpeza ou esfoliação corporal feitas com as redes, o Águas limpas, em curso desde 2014, reverte cerca de 20% do lucro para projetos comunitários dedicados ao reflorestamento. Um dos mais importantes é o capitaneado pela ONG Apremavi, Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida, com sede no município de Atalanta, em Santa Catarina. Criada em 1987, a Apremavi realiza uma série de iniciativas para recuperação de áreas devastadas da Mata Atlântica; Nara Guichon é associada à entidade desde 1988, colaborando de modo contínuo e ativo: só em 2019, ela foi responsável pelo plantio de 3.000 mudas de árvores, numa ação de colaboração e restauração de parcela dessa floresta.