MENTIRA E ILUSÃO
A origem da palavra mentira é controversa. Alguns etimólogos apresentam uma relação com a palavra mens, que se aproxima de “mente” ou “inteligência”. A mentira requer uma mente ativa, perspicaz em seu planejamento e execução, criando um mundo que simula a realidade. Mentir pode dar muito trabalho. Já a ilusão possui um longo retrospecto nas artes visuais. Pelo menos desde do Renascimento até à Op Art, artistas utilizaram materiais e técnicas que tinham por objetivo dirigir o olhar do espectador. A illusio latina dá conta dos duplos movimentos dos nossos olhos que entram e saem do que é visto, em um jogo que altera a nossa percepção do real, e que nos seduz por ser a ilusão prazerosa. Patricio Farías (Arica, Chile, 1940) oferece a possibilidade de abordar um mundo de inúmeras nuances em que precisamos re-olhar o que vemos – trabalhos nunca unívocos e onde o engano é sempre bem-vindo.
Para a exposição Mentira e Ilusão, Farías preparou uma nova série de trabalhos em que a condição da ilusão de óptica se impõe. As diversas figuras apropriadas de uma matriz imagética pré-colombiana parecem emergir sobre a superfície da gravura. Utiliza a mesma técnica dos trabalhos da série Reticulados (2020/2022), expostos na Ocre Galeria na exposição Reticulados e Mitológicos (2022), e que envolve a fotografia e a manipulação digital. Após aprofundada pesquisa de materiais e contando com a colaboração do artista e fotógrafo Leopoldo Plentz, Farías oferece novos trabalhos que são o resultado de um rigor do fazer de um artista que insiste em materializar em gravuras, objetos e esculturas uma visão de mundo em que se sobrepõe a ilusão, o estranhamento, a ironia e o humor.
Um grande espermatozoide que engana o nosso olhar diminuindo o tamanho real de bebês (bonecos de diferentes cores) – em seu interior, assinala o poder do artista em causar estranhamento no espectador, deslocando a ordem e a função dos objetos comuns que parecem integrar um mundo inventado e ao mesmo tempo semelhante ao nosso.
Como resultado do trabalho com diversos materiais, como a areia, a terra e o plástico, Farías nos oferece uma mosca hiperbólica. Ao invés de nos sentirmos repelidos pelo inseto, somos seduzidos pela possibilidade de entender de perto o processo de produção que foi empregado na obra. Mais uma vez se impõe no mundo de Farías um bem humorado estranhamento que magnetiza o nosso olhar. A representação de moscas é recorrente em sua carreira desde os anos 80.
Também estão presentes na exposição, duas esculturas em madeira e tecido intituladas Molas Málicas (2000), ambas baseadas no Grande Vidro de Marcel Duchamp, em que o colorido intenso contrasta com as formas de um design já característico de Farías ao longo de sua trajetória artística. Sofisticação formal que também podemos observar em Visca Catalunya (2010), escultura em madeira, ferro e plástico, que tem como referência a bandeira da Catalunha, conhecida como Senyera, caracterizada por um fundo amarelo e quatro faixas horizontais vermelhas. O artista presentifica neste trabalho essas cores com origem histórica no escudo do conde de Barcelona que viveu no século XII. N.M. (2016) são fotografias manipuladas digitalmente em que aparece outra referência importante para o artista: os objetos constantes nas naturezas-mortas do pintor italiano Giorgio Morandi (1890–1964).
Confesso que vivi (2010) é uma escultura em aço, vidro e plástico cromado, cujo título é inspirado na autobiografia do poeta chileno Pablo Neruda (1904–1973), obra literária publicada em 1974. O trabalho faz alusão a algumas questões caras ao artista como a memória, a vida e a morte, e às suas próprias origens no Chile.
Atravessa a exposição a compreensão do poder da mentira e da ilusão na trajetória artística de Patricio Farías. Uma disposição existencial aberta ao conhecimento plástico específico presente nas artes visuais.
Yuri Flores Machado
Historiador da Arte