AVALANCHE DE EMOÇÕES

Denise Mattar [2009]

Foi com enorme prazer que aceitei o convite de Márcia Tiburi e Regina Rosa de trabalhar com elas neste livro sobre Maria Tomaselli. Sempre me interessei por artistas que de alguma forma ficaram à margem da historiografia oficial. É o caso de Maria, cuja obra é de excepcional qualidade. Radicada em Porto Alegre a artista paga um preço caro por esta escolha. Integrada no circuito de arte no período em que viveu entre Rio e São Paulo, sua obra, mesmo mantendo a mesma energia, deixou de ser acompanhada pela crítica. A verdade é que a hegemonia do eixo Rio-São Paulo ainda é um fato, apesar do discurso reinante sobre integração das artes, globalização etc.

Conheci Maria em 1989 quando tive a oportunidade de participar da aventura da Oca-Maloca como diretora técnica do MAM-SP.  A obra ficava colocada na marquise do Ibirapuera, como um evento especial do Panorama de Pintura do museu. Foi um enorme sucesso atraindo todo o público da XXª Bienal que ocorria paralelamente. Guardava da Oca-Maloca a lembrança de uma festa de cor e som. E de Maria a recordação de uma artista apaixonada e apaixonante. Foi maravilhoso reencontrá-la.

Nesses dias de trabalho para a realização do livro descobri que um dos artigos críticos preferidos de Maria, é um texto de Arnaldo Pedroso  D’Horta, logo do início de sua carreira. Nele o critico observa certas semelhanças entre a obra de Maria e a de Flávio de Carvalho:

A notícia biográfica informa que Maria Tomaselli, austríaca de 30 anos, que a foto nos mostra com um petulante nariz arrebitado, radicada no Brasil desde 1965, estudou com Iberê Camargo, Danúbio Gonçalves e Paulo Menten. Não fosse isso, juraríamos que ela tomara suas lições com Flávio de Carvalho, com quem se aparenta não somente pela temática dos nus femininos, tratados de maneira cáustica, demolidora, como pela nervosidade do traço.(…) Quanto à pintura, lembra-nos de novo, irresistivelmente, o jeito de trabalhar de Flávio de Carvalho. Há uma agressiva malvadez no destratar as formas, quebrando-as revirando-as. Arnaldo Pedroso D´Horta, O Estado de São Paulo, 27.03.1973

Em 1999, dez anos depois da Oca, tive a oportunidade de organizar uma retrospectiva de Flávio, comemorativa do seu centenário de nascimento. Trabalhei um ano estudando sua obra, e, devo dizer, que concordo inteiramente com Pedroso D’Horta.

Maria e Flávio são artistas da mesma falange: criativos, profusos, densos, iconoclastas. Sem medo de errar : ousando, gritando, e ao mesmo tempo capazes de sutileza e lirismo emocionantes. Arte cheia de vida, sensual, atrevida, esgotando forças, cuspindo energia. Flávio e Maria são obsessivos do gesto, do olhar e do conceito. Conceito entendido como discurso poético-filosófico, como mergulho nas águas profundas da mente. Nize da Silveira me disse certa vez que os loucos e os artistas mergulham nas mesmas águas, mas que os artistas delas sabem voltar. Assim como Maria, Flávio construiu seu feudo, sua morada, cheia de cores e de amores.

Assim como Flávio, Maria é deliciosamente divertida e caótica. No seu blog ela tem um texto no qual diz: “Se eu fosse organizada e fizesse o que meu pai me ensinou, eu teria tudo catalogado, em ordem cronológica e fazer um livro seria uma barbada; mas puxei o sangue de minha mãe. Olhando a mesa de trabalho dela (igual à minha…) já dá uma idéia… só que, em nossa defesa, preciso dizer: o caos faz as coisas acontecerem, porque quando menos se espera se acha algo que, em ordem perfeita, estaria guardado numa pasta (real ou virtual) e fora do alcance dos nossos olhos. Assim não: toda hora ,por acaso, vejo alguma coisa que fiz em algum tempo, e assim se  acendem lembranças e emoções. Agora que estou tentando ajudar a fornecer dados à Márcia para seu livro sobre mim, surgem dos armários, das gavetas, dos envelopes, das prateleiras, dos diários: fotos, recortes, rabiscos, trabalhos…uma avalanche de informações soltas…

E que avalanche! Nas muitas horas trabalhando juntas Maria me propôs coisas como: colocar em alguns trabalhos a sigla SDSOE (só Deus sabe onde está), ou ainda colocar as medidas das obras como das roupas : PP, P, M, G, GG. Foi difícil conseguir manter certas normas museológicas. Por isso peço que desculpem alguma falha de medida ou datação de obras…

Ao preparar a mostra do “Revolucionário Romântico” eu estava tão perturbada com a necessidade de definir o que iria participar da exposição, dentro da enormidade da produção de Flávio, que escrevi no texto de abertura a seguinte frase: “Fazer curadoria é selecionar; e nunca foi tão difícil escolher”. Senti a mesma sensação ao selecionar as imagens para esse livro sobre Maria. Como foi difícil olhar para obras marcantes e dizer: “Isto não estará na publicação”. Sofrimento e angústia, mescladas a emoção e paixão – tudo delirante, e tudo muito! Traços e cortes precisos, luz e cor inebriantes, mergulho no inconsciente, discursos filosóficos – e muita força em tudo.

Em 2003 quando escrevi o livro Lygia Pape – Intrinsecamente Anarquista, outra integrante da falange, recorri a um texto sobre Flávio de Carvalho escrito por Sylvio Rabello. Ele tem tudo em comum com Maria, e me permito, mais uma vez, parafraseá-lo:

“As coisas tem para Flávio/Maria um sentido estranho, como se os seus olhos penetrassem mais fundo na intimidade delas. Explica os fatos apanhando, aqui e ali, fios sutis e desapercebidos pela maioria dos homens, e, quase sempre, as suas explicações são de um imprevisto total… É que estamos habituados a pensar como todo mundo. As nossas idéias não são nossas: são idéias servidas e re-servidas por todos. E idéias diferentes arrepiam e chocam, como se fossemos perder subitamente o equilíbrio.”

Maria Tomaselli está sempre a dar empurrões na rotina e no lugar comum – a fazer-nos perder o equilíbrio.