ESPAÇOS DO CORPO

Mônica Zielinsky  [et alii. Espaços do Corpo. Edit. da Universidade Federal do RS. Porto Alegre, RS. l995. Doutora pela Universidade de Paris 1 – Sorbonne – Professora do Instituto de Artes da UFRGS – Pesquisadora de Artes Plásticas]

Lenir de Miranda, em sua trajetória, evidenciou uma produção intensa, que sempre a arrebata profundamente. Esta produção foi testemunha de sua angústia diante de toda uma problemática da história de seu tempo. Mundos representado e real fundem-se pelo olho perspicaz desta artista, tão identificada e atingida por fatos que, em seu entender, abalam as condições de sobrevivência e convivência humanas no momento presente.

A temática em Lenir não busca o agradável. Trata da realidade dramática e do seu posicionamento crítico frente a esta realidade. É sem dúvida uma arte de contestação.

O tratamento espacial em sua obra apresenta um conjunto de aspectos importantes para a análise. Verificam-se as rupturas espaciais, as imagens mecanomorfas, os infinitos diferentes pontos de vista que quebram a unicidade de compreensão do espaço.

Espaços sobre/vivências apresentam acentuados planos cortados-recortados. Alguns são preenchidos de corpos, outros somente de grafias ou sinais (asteriscos, cruzes, setas, números, palavras, espirais, linhas e rabiscos). Mas sempre há um corpo que emerge deste espaço, “sobrevivendo” a todo interceptar dos planos, janelas e molduras. O seccionamento é sempre de asfixia, de enquadramento do constrito. Mas mesmo assim, por minúsculo que possa surgir o personagem, ele espia. Daí a ambiguidade das relações figura-fundo. Nunca se sabe o que é um ou outro.

Corpos na produção plástica de Lenir: imagens que tornam presente ou são sintomas de um sentido que os transcende.

Corpos e espaços no trabalho de Lenir de Miranda integram-se profundamente. Suportam-se coerentemente. A instabilidade é a mesma, assim como as rupturas, ambiguidades e confusão. A trajetória parece ser a de expansão, da linha, da mancha, da cor, das configurações, mas principalmente dos próprios fragmentos.

A produção plástica de Lenir de Miranda propõe infindáveis questões, tanto no que se refere à produção em si como sobre a função que ocupa no espaço social da arte do Rio Grande do Sul.

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A ESCRITA, A PINTURA ESCRITA

Icleia Borsa Cattani [Doutora em História pela Universidade de Paris I – Sorbonne. Professora e Pesquisadora do Depertamento de Artes Visuais da Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Editora da revista Porto Arte.]

A integração não tem a ver com a ilustração da escrita pela imagem, nem com a “explicação” da imagem pela escrita: elas andam juntas, correspondem-se sem se explicarem mutuamente, complementam-se sem se fundirem. Cada linguagem permanece íntegra nela mesma, num diálogo tenso com a outra; tenso, porque não se traduzem mutuamente; porque não se equivalem; porque seus elementos constitutivos são únicos e irredutíveis um ao outro. Segundo Foucault,

“ … a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.” (Foucault, 1992 , p.25).

Não há fusão entre texto e imagem, mas há “contaminação” de um pelo outro. Eles não se justapõem apenas, como em livros ilustrados tradicionais, mas se sobrepõem. A escrita é recoberta por manchas de tinta, ou por grafismos gestuais. O desenho possui, freqüentemente, frases ou palavras soltas: nem títulos, nem explicações, mas elementos formais que interagem com as imagens:

“A imagem vai nascendo, e ela mesma exige respostas. Vou traçando e vou enxergando. A figura fica ali, me olhando, me desafiando. Ou eu acho o que ela quer, ou perco tudo.” (Miranda, 2000)

Perde tudo, ou se perde? A arte é como a esfinge: “decifra-me, ou te devoro.”

Lenir anseia pelas palavras como anseia pelas formas, cores, gestos que a pintura e o desenho permitem. Seu Ulisses é o herói narrado, sua trajetória, mas é também o mundo de paisagens, cenas, figuras que a própria narrativa desencadeia em sua imaginação. Assim, o oceano: que vai e vem, num retorno cíclico, tal como Ulisses. O círculo da vida, representado pelo fluxo da água, que, no seu ir e vir, nunca é a mesma. Do mesmo modo, o grafismo que a representa nunca é igual, pois o gesto sempre muda, de forma quase automática, inconsciente. A água é que conduz a mão, como as ondas conduzem Ulisses. O Ulisses de Lenir é seu Ulisses, que só existe na totalidade da palavra com a imagem. De suas palavras com suas imagens. É sem dúvida por isso (sendo a arte, sempre, uma forma de auto-retrato), que, neste último livro, Lenir substituiu o Ulisses-Leopold Bloom de James Joyce por Agnes Bloom. O outro lado do mito, sua face escura. O feminino, identitário e marginal simultaneamente. Dual: mito e anti-mítico, herói e anti-heróico. Aquele que se desloca aleatoriamente, mas não cumpre uma trajetória circular. Aquele que espera: é sempre o feminino que espera, que conta o tempo (o que passou, o que virá, o que falta passar). Aquele que se ocupa dos pequenos fatos do cotidiano. Aquele que exerce a repetição, essa sim, efetiva, das incontornáveis tarefas do dia a dia.

O CORPO-ESCRITA, O CORPO ESCRITO

A escrita sempre forma um corpo. Conjunto de signos que imprimem sobre o suporte uma tessitura, como uma tapeçaria. A mão que escreve, e o olho que lê executam um movimento regular, linear, rítmico, como tecendo e retecendo um corpo feito de tramas.

No caso deste livro, esse corpo é irregular: variam os espaçamentos, os tipos dos caracteres, seu tamanho; às vezes, a escrita manual rompe a regularidade das letras impressas e introduz o tocante tremor do corpo que cria, o corpo da artista.

Rasuras, vazios, notas à margem, sublinhas também constituem esse corpo textual, negando sua vocação à uniformidade e evidenciando-o como um organismo vivo: com suas cicatrizes, imperfeições, irregularidades. Ele reconstitui a gênese dos mitos: a narrativa oral, com seus ritmos irregulares, suas ênfases, suas pausas. E a presença indispensável do corpo que narra. A narrativa de Lenir, mesmo quando impressa em caracteres mecânicos, cria um ritmo que evoca os grafismos de seus desenhos: rapidez, urgência, a necessidade de registrar à medida que a idéia “sai” de sua mente e escorre para a mão.

Ele traduz, assim, com mais força, o corpo escrito, de Agnes. Exposto com seus cansaços, seus fluídos e fluxos, sua pele e pêlos. Desvelado com seus sentimentos, reflexões e observações. Desvendado, sobretudo, por seu olhar.

Esse corpo olha os dos outros e é por eles olhado. Vê-se refletido no espelho de um outro passageiro do ônibus, bem como nos vidros embaçados das janelas. Encontra-se projetado do corpo da artista e rebate em nossos próprios corpos, nós leitores – espectadores – voyeurs. Todos somos Agnes, todos somos Ulisses. A névoa de Ítaca nos invade a todos.

Agnes está nas quinas dos muros, bem como nas ondulações das águas. A cela e o mar representam, para Lenir, duas simbolizações antagônicas do corpo, encerrado e livre simultaneamente. O corpo está, pois, presente (embora, não figurado) nos desenhos desses lugares.

Agnes, secretamente, transborda.

Como Lenir. Como todos nós, que sempre tentamos ir para muito mais além dos limites de nossos corpos: através dos mitos, ou do imaginário, ou da arte.

Referência Bibliográfica:

CATTANI, Icleia. A Escrita Pintada, A Pintura Escrita. Catálogo da Exposição PinturaLivroJoyceanamente. Galeria Obra Aberta : Porto Alegre, 2001.