ARQUEOLOGIA DO CAMINHO. Leandro Machado

MARTINEA [Arqueologia do caminho. Centre Intermondes, La Rochelle/FR, 2019]

Em seu trabalho fotográfico, Leandro nos convida a participar de vestígios reunidos em suas caminhadas em Porto Alegre/RS, sua cidade natal.

Caminhando a pé pelo país, o artista descobre a beleza de coisas aparentemente insignificantes como vestígios da cultura de seus ancestrais, uma cultura em processo de desaparecimento. Ele compartilha conosco seu espanto discreto sobre a expressão humana imortal na vida cotidiana sem importância. Com seus olhos frescos, nutridos por uma ingenuidade consciente, Leandro nos introduz a sua percepção da presença humana. Estes não são necessariamente retratos de homens ou membros desta cultura, mas seus gestos e suas exibições.

Com uma terna ironia, Machado recolhe estruturas aleatórias, ilusões manifestas, sonhos abandonados e repetições humanas.

Suas fotografias são um roaming memorial da identidade do homem em qualquer paisagem, tomada durante uma peregrinação diária.

O trabalho de Leandro torna-se ainda mais significativo na atual situação política no Brasil: a arqueologia do caminho é um estudo artístico dos restos de uma civilização em perigo de desaparecer.

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LEANDRO MACHADO, a síndrome de Baltasar: o tesouro e o capital.

PAULO HERKENHOFF [RS XXI – Rio Grande do Sul experimental. Santander Cultural. Porto Alegre/RS/BR, Pg. 61 – 67, 2018]

“Sou um negro artista,” anuncia Leandro Machado, “me dou o direito de fazer, falar, pensar sobre tudo o que bem desejar e sentir necessidade. A exemplo dos artistas não negros que não se preocupam, nem são cobrados a pensarem um único tema.”1 Sua obra compõe a nova força da arte dos afro-descendentes que no século XXI impele o Brasil a um notável salto, de Norte a Sul, com Ayrson Heráclito, Eneida Sanches e Nádia Taquery na Bahia, Antônio Obá em Brasília, Dalton Paula e Helô Sanvoy em Goiás, Thiago Martins de Mello no Maranhão, Paulo Nazaré em Minas Gerais, Lídia Lisboa no Paraná, Arjan, Aline Motta e Maxwell Alexandre no Rio de Janeiro, Xadalu e Waldemar Max no Rio Grande do Sul (ao lado do próprio Leandro Machado), Sergio Adriano em Santa Catarina e Rosana Paulino, Yasmin Tainá, Juliana Vicente, Viviane Ferreira, Renata Felinto, Jaime Lauriano, Moises Patrício e Sidney Amaral em São Paulo entre outros. A agenda inconformada desses artistas-guerreiros configura a Emancipação real2, para superar traumas e o neoescravismo pós-colonial ou denunciar persistentes condições estruturais de exclusão e ausência de oportunidades pela imobilidade social vinculada à origem e à aparência. Estes artistas lapidam o cristal nevrálgico para a visibilidade radical e o confronto político, a expansão de embates, o escancaramento do cinismo da dita democracia racial brasileira. Sua dádiva para o Brasil é um editos rigoroso. Algumas das correntes mais pulsantes da arte brasileira atual são a agenda afro-descendente, a arte como diagrama de alteridade, as discussões de gênero, a história da violência na Amazônia, arte dos huni kuins, ashakinkas e outros grupos autóctones e os coletivos insurgentes.

O mais difundido mito da infância afro-brasileira é o Negrinho do pastoreio (meados do século XIX) de origem gauchesca. É um jovem herói do trabalho que, sob condição escravizada, legitima a ideologia da subalternidade e da sublimação escravista e a virtude cristã dos cativos, nos moldes da manipulação senhorial dos negros cristianizados de Tarsila. No Palácio Piratini, sede do governo do gaúcho, o Salão do Negrinho do Pastoreio foi decorado por Aldo Locatelli com a saga do menino. Para Moacir Scliar, a falta de querência marca o jovem. “Não sou um encantador de lendas,” confessa Machado, “não sei sobre a lenda do Negrinho do pastoreio. Acho que a história apresentada lá segue acontecendo hoje, agora [com muitas e muitos]. Tenho que dar conta do presente que me atordoa, me cobra e quer me matar. Tudo muito igual.” O artista afro-gaúcho se projeta como um pastoreador sob advesidades. O antídoto e o paradigma para ele parece ser Maria Lidia Magliani no ambiente afro-gaúcho: “uma artista potente, vibrante, contestadora, contundente, singular, ponta de lança.”

Leandro Machado produz arte sob penúria material. “No desejo de abandonar a pintura com tinta acrílica/óleo, agressivos ao meio ambiente e às pessoas. E também por buscar estar liberto do comércio de produtos para artistas”, ele incorpora

materiais como rejeitos do lixo e embalagens para se expressar uma vontade povera, isto é, fora do cânon da Academia. A crise que acomete aos negros artistas no Brasil converge os argumentos de Machado para o Manifesto do 3º Mundo (1969) de Barrio sobre o adverso na arte, com o “uso cada vez maior de materiais considerados caros, Academia para a nossa, minha realidade, num aspecto sócio-econômico do 3o mundo (…) devido aos produtos industrializados não estarem ao nosso, meu, alcance, mas sob o poder de uma elite que contesto, pois a criação não pode estar condicionada, tem de ser livre.” A verdade sócio-antropológica do signo material na arte de Machado – henê, terra ou cabelo – enfrenta encargos de uma agenda de alertas, vereditos e reivindicações.

“Não é uma terra específica” – o uso de terra por Leandro Machado convoca os estados melancólicos dos escravizados no limite da desesperança com relação ao brutal corte cultural e ao futuro resultante da travessia sem volta do Atlântico3. A dimensão trágica do tempo da escravidão no Brasil em Machado são vestígios de descaminhos. “É terra que encontro por onde passo”, diz. Por fome, penúria e banzo, muitos escravizados desenvolviam o hábito de comer terra, como psicopatologia para o adoecimento (para ter descanso da extrema fadiga do eito)4 e suicídio por recusa ao cativeiro.

Do desterro à resistência, Leandro Machado abre a pauta espiritual com Otá ou lá onde a pedra não sabe que é estátua, na tradição de Rubem ValentimLeonardo Remor comenta a mostra na Península em Porto Alegre (2017): “Nas religiões afro-brasileiras [otá] é a pedra sobre a qual o axé – a força sagrada – é fixado por meios de rituais consagratórios, encontrada em todo igba orixá. Sem pedra otá não há orixá.” Na ação de introduzir padrões afro na arte, o objeto Guia (2017, tecido e porongos) de Machado é um imenso colar que alude às joias sacras do candomblé.

No Brasil, como na África sub-saarina, o cabelo, defende Leandro Machado, é “identidade, força, cultura, beleza, escultura, aceitação, carinho, presença, poesia, matriz, legado, música.” Sua escultura Bola (2018), avalia, “é uma pérola, uma conta que enrolo entre a palma das mãos.” Bola é uma esfera com força bio-politica, que alude ao globo da diáspora. Contra a síndrome de O teu cabelo não nega, a marchinha de carnaval, Leandro Machado trabalha com seu próprio cabelo crespo – a que chama de cabelo bom – “falando das questões que me tocam. Frente ao discurso que prega pelo alisamento dos cabelos crespos como único modelo de padrão estético/cultural [promovendo nesse sentido possibilidades de perda de identidade], subverto o seu uso, buscando dar visibilidade, protagonismo ao mesmo grupo que desejam extintos da face da terra.”

Leandro Machado produz retratos que denomina Henê (2003), a popular tintura de cabelos usada pelos afro-descendentes, que se converteu em sua tinta. Henê é um cosmético para tratamento capilar usado como alisante, colorante e hidratante, à base de ácido pirogálico. O problema histórico do eixo tez/cor da série Henê remonta ao Renascimento italiano em que a arte passou a representar o rei mago Baltasar como um mouro ou negro, diferente do tratamento uniforme anterior dado aos três. A

etimologia de Baltasar em hebreu é “senhor dos tesouros”. Inventa-se uma cor – testa de moro (cabeça de mouro) para aludir à tez escura dos árabes do norte da África, como nas versões da Adoração de Andrea Mantegna e de Albrecht Dürer. No trato telúrico de Machado, cabe aproximar as séries Henê e Terra (2015), que provém do “desejo de resgatar conhecimentos milenares que dizem respeito ao ser humano e a pintura”.

Os Grabilões, termo surgido em sonho, sedimentaram-se como formas neutras, um significante poroso, um estilema do artista, talvez um pathos formal em linguagem waarburguiana, mas que se mantém elegante e tenso, reconhecível em sua identidade gestáltica que sempre surpreende. Em linguagem duchampiana, é uma espécie de valise de significados, como na Colagem com grabilões que absorvem a frase “Você é sua própria ferramenta”. Na linhagem interpelativa dos artistas afro-americanos, como a combativa Adrian Piper, Leandro Machado lança o alerta para a potência do sujeito em meio ao mal estar da sociedade racista. Piper se confronta diretamente com quem demonstra algum de racismo; Machado opera de modo difuso sobre a psicologia social.

Na capa de livros, Leandro Machado denuncia a função alienante da pedagogia dominante: Educação que aprisiona, Educação que escraviza e Folheio, folheio e não me vejo, porque “não encontrou nos livros, nem na sala de aula [me recordo de apenas uma negra professora durante toda minha vida escolar], nem na biblioteca a historia da África/dos africanos, muito menos escritos sobre a resistência, a cultura, as contribuições, as personalidades nesse tempo de Brasil.” Ele conclui que o sistema de arte é uma maquina “que deseja profundamente barrar, conter: sem a presença de negros professores/negros colegas em número saudável/ literatura/ discussões.”

Lojas Africanas aborda força de consumo da população afro-descendente na economia brasileiraUma tabuletinha pintada à mão como anúncio improvisado, sem graphic design ou estudo de marca, das Lojas Africanas apela para uma caligrafia vernacular, índice da marginalidade do lugar sócio-cultural da imensa população afro-descendente. No entanto, o jogo de consumo em relação às etnias está mudando. Os anúncios na imprensa a partir da década de 2010 indicam que o marketing de super-mercados, cosméticos, vestuário, turismo, casas bancárias, automóveis, incluem negros atores para alcançar o segmento de consumidores. Ainda assim, diz Carlos Augusto de Miranda e Martins, autor de Racismo anunciado: o negro e a publicidade no Brasil, “embora a presença do negro na publicidade brasileira tenha aumentado nas últimas décadas, ela ainda deixa muito a desejar. Estereotipada ou pro forma, a representação de negros nos anúncios reflete o persistente racismo da sociedade brasileira.”5 Muniz Sodré cogitou de fenômenos de encenação mercadológica da diferença6. As Lojas Africanas, ao tomar os padrões de identidade das populares Lojas Americanas, exibe as relações do capitalismo entre economias centrais e periféricas e estrutura de classes em seu viés das origens étnicas. Num cartazete das Lojas Africanas, ele inserta o grito de alerta em lugar do último grito da moda: De quem é o corpo que pode ser torturado?”, uma síntese moral de sua obra.

1 Todas as citações de Leandro Machado são extraídas de seus emails a Paulo Herkenhoff em abril de 2018.

2 Denominação provisória para conceito em elaboração pelo autor deste ensaio.

3 Ver KARSZ, Saul “Time and its secret in Latin America”. KARSZ, Saul et allii. Time and its philosophies. Paris, 1977.

4 Ver ODA, Ana Maria Galdini. “Dos desgostos provenientes do cativeiro: uma história da psicopatologia dos escravos brasileiros no século XIX”.

5 MARTINS, Carlos Augusto de Miranda e. “O mercado consumidor brasileiro e o negro na publicidade” (2015)[http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/gvexecutivo/article/viewFile/49190/48003]

6 MUNIZ SODRÉ. Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil (1999). Apud Carlos

Augusto de Miranda e Martins, Ibidem.

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Otá ou lá onde a pedra não sabe que é estátua.

LEONARDO REMOR [Galeria Península, Porto Alegre/RS/BR, 2017]

A partir do próximo sábado, dia 1º de julho, Leandro Machado muda sua casa-ateliê para a galeria Península, numa mistura de residência artística, feira-bazar, exposição em constante modificação e ateliê sempre aberto – é o artista quem recebe o público. Otá, itá, okutá, okuta ou otá-de-santo. Do iorubá, pedra. É a pedra fetiche. Nas religiões afro-brasileiras é uma pedra sobre a qual o axé – a força sagrada – é fixado por meios de rituais consagratórios, encontrada em todos igba orixá. Sem pedra otá não há orixá. É ancestral o papel do artista como aquele que dá forma, imagem aos mistérios dos cultos aos deuses e deusas. Se hoje eles não vivem apenas da criação desse imaginário, alguns materializam ideias e criam atmosferas, são capazes de gerar forças que afetam o espaço. Os trabalhos de Machado certamente guardam este mistério. São discursos assentados, urgentes. Inutilidades indispensáveis. O artista usa o seu entorno, seu cotidiano e tudo que encontra pelo caminho como matéria-prima para criação. Arte e vida. O cabelo vira corda, a rua vira desenho, um plástico reflete um riacho e a Península se transforma num outro lugar.

A arte é uma ferramenta para construção da consciência libertária.

Esse texto também segue a lógica dessa exposição, sempre em constante transformação, e será escrito/ampliado conforme o passar dos dias, acompanhando tudo que está por acontecer aqui.

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Chão: Poéticas Caminhantes

ESTÊVÃO DA FONTOURA HAESER [Arqueologia do Caminho. Porto Alegre/RS/BR, Pg. 17 – 19, 2016]

Talvez o maior valor para o trabalho de um Artista Contemporâneo seja a liberdade. Mesmo inserido em um mercado capitalista e sendo obrigado a obedecer às lógicas do capitalismo, enquanto profissional tem grande liberdade de ação, visto que é ele (ou ela) quem propõe o seu próprio trabalho. Talvez alcançar a consciência dessa liberdade seja um grande desafio e algo que demande certo tempo experiência. Outro desafio é o de escolher o caminho mais difícil, o de fora: fora das instituições, fora das galerias, fora das lógicas mais comuns. Existir em um circuito alternativo é uma das possibilidades atuais também para os Artistas Visuais. Dentre as inúmeras conseqüências, pode a independência ser entendida como um ponto positivo. Ser independente é ser autônomo e essa autonomia exige organização e muito trabalho. Leandro Machado, negroartista destes charcos e riachos, escolhe estar fora, para ter independência e liberdade, mas também está dentro do circuito de galerias, pois seu trabalho tem um viés universal, em pelo menos dois sentidos. O primeiro é de que todas as pessoas que vivem em uma cidade e podem deslocar-se já a percorreram, seja em sua totalidade, seja parcialmente. O outro, pensando mais na produção em pintura, é que a pesquisa que desenvolve se utiliza de formas simples –ora abstratas, ora figurativas –o que em geral permite que os expectadores construam sentido a partir das suas próprias experiências, se apropriem. Como na vez em que uma menina na sua espontaneidade, ao estar frente a uma das pinturas com Grabilões (formato que lembra a representação de uma gota), exclamou:

-Olha, tá de cabeça pra baixo, são balões!

Outro aspecto fundamental a ser entendido, quando se pretende um negroartistacontemporâneo e desse ofício tirar o sustento, é que não é possível ficar parado: o movimento é imperativo, a mobilidade é obrigatória. Mais ainda, numa sociedade de redes, onde as relações, contatos, encontros, parcerias acontecem de forma descentralizada, é necessário saber se deslocar, acompanhar os fluxos, estar pronto para colocar-se em trânsito. E esse mover-se no tempo e no espaço pode ser entre países, estados, cidades, dentro da mesma cidade, de um bairro a outro, entre lugares dentro de um mesmo bairro. Os deslocamentos estão diretamente ligados ao território que este artista ocupa.

Leandro diariamente tenta aprofundar a relação com o território onde vive, através de caminhadas que são verdadeiras expedições arqueológicas: investigando camadas sobrepostas de excesso e de exagero da vida na cidade caótica. Essa cidade que, travestindo-se de civilizada, com seus concretos e semáforos, seus quarteirões geométricos e viadutos caros para os carros, é, na verdade, um grande encontro de não-lugares, ou seja, lugares de passagem, onde as relações sociais são estabelecidas pela funcionalidade e praticidade do lugar, como teorizou Marc Augé. Hélio Oiticica já tratou de pensar esses espaços e de percorrê-los em suas errâncias pelo que ele chamava de Grande Labirinto, essa trama urbana conhecida como Rio de Janeiro. Hélio e Lygia Clark teceram a ideia de que os vazios da cidade são “vazios plenos”, plenos de experiências por serem vividas, plenos do desconhecido, do acaso (JACQUES in CARERI, 2013). Assim, podemos entender que Machado não é o primeiro nem será o último a

fazer caminhadas exploratórias, ou transurbâncias, como se referiam Careri e o grupo Stalkers (em suas caminhadas por algumas cidades européias a partir de 1995), mas está inserido em uma tradição. E é uma tradição maldita, alternativa, não hegemônica, de percorrer o mundo a pé, com a força das próprias pernas, e fazer disso uma poética artística.

Leandro, a exemplo dos seus antecessores, ativa os espaços por onde passa preenchendo-os com o olhar curioso do outro, num constante exercício de alteridade. Aquilo que cativa a percepção do artista, chamando sua atenção, ganha o registro fotográfico, ganha uma relação físico-digital-tecnológica com essa máquina fazedora de significados, criadora de momentos, a câmera fotográfica, que possibilita que esses momentos sejam colocados no mundo em forma de imagens. Como elucidou Lefebvre, ao afirmar que:

na linguagem comum, a palavra “momento” se distingue pouco da palavra “instante”. Mas, contudo, se distingue. Dizemos: “foi um bom momento”, o que implica uma certa duração, um certo valor, um arrependimento, talvez, a esperança de reviver o momento, ou de conservá-lo como lapso de tempo privilegiado, embalsamado na lembrança. Não seria esse um instante qualquer, nem um simples instante efêmero e passageiro. (LEFEBVRE, 1961)

Ao receber o enquadramento e o foco pela câmera do caminhante-arqueólogo, as coisas ordináriaspedestres e cotidianas ganham um novo status: passam a fazer parte do mundo da arte. Como um(a) mago(a), eleva a coisa comum, transformando-a em coisa-motivo de um trabalho artístico, simplesmente por assim decidir e o consuma ao apertar o botão da câmera. O artista, diferentemente das outras pessoas, não joga qualquer imagem para o mundo: ao selecioná-las dentre as tantas que produz, de maneira responsável e intencional, diz algo de forma poética, indireta, metafórica, e assim atribui significado ao mundo.

A CEGUEIRA URBANA OU A CIDADE INVISÍVEL

Com a proposta de obra -um livro que organiza e significa registros de uma série de vivências pelas ruas da cidade -Leandro está realizando uma produção de resistência: dá visibilidade ao que é invisibilizado pela sociedade. Não são quaisquer ruas as que ele tem percorrido e a opção pelas regiões e bairros mais afastados do centro onde, em sua maioria, moram trabalhadores assalariados, longe da infra-estrutura, longe da abrangência e da vigência das leis, distante dos olhos do Estado, o que mostra muito da vocação desse trabalho. Essa escolha também gerou outra questão: melhor do que andar sozinho é andar com um amigo, um colegairmão que também é artista, alguém com quem se possa viver os momentos e estabelecer um diálogo. Assim convidou Paulo Corrêa para juntar-se ao grupo de pessoas que dão sustentação ao Arqueologia do Caminho.

Sobre a temática das imagens produzidas durante o Projeto, algumas das fotografias feitas nessas derivas são registros da existência de elementos que remetem a uma presença, ainda que mínima, do Estado e do Poder Público: linhas e pontos de ônibus, praças, pontes, postos de saúde e escolas. Outros temas que aparecem são as intervenções humanas na paisagem urbana, manifestações culturais e territoriais,

como o grafite e as pichações. Assim como o olhar sobre os diversos bairros, revela um expressivo número de pontos em comum: prédios, chalés (representantes de um tempo, hoje constituem-se como formas de resistência ao atual e crescente padrão habitacional), barracos, terrenos baldios (espaços de respiro), arbustos, ervas, árvores frondosas e floridas, arroios, campos de futebol, canchas de boxa, pracinhas, abandono do poder público, asfalto, chão batido, vizinhança, amizade. O que o duo reafirma não é somente a existência de outras Porto Alegres, mas também a potência destes lugares por onde não se caminha, a menos que se more lá -singulares de beleza e de riqueza natural e cultural.

Nessas regiões percorridas por Paulo e Leandro não há museus, a arte institucionalizada não alcança essas comunidades [cabendo muitas vezes aos centros comunitários a solitária tarefa de fomento de alguma atividade cultural]. Portanto, é absolutamente coerente e pertinente que estes artistas proponham andanças nestes locais e a partir delas façam registros fotográficos, promovendo uma certa inclusão da arte (a partir do olhar artístico) nestes lugares e destes lugares no mundo da arte. A visão do estrangeiro mostra-se privilegiada em relação à das pessoas que ali vivem, para as quais tudo ali é ordinário. Mas no enquadramento dos artistas, carro caído em valão é poesia, assim como árvore em flor em meio ao concreto e pichação inacabada também o são.

PRIMEIROS PASSOS

Dois negrosartistas percorrendo a passos outras Porto Alegres, esta Cidade que se orgulha de sua origem açoriana e que, como diversas outras cidades brasileiras, traz na arquitetura uma forte influência portuguesa. Longe do Centro Histórico, onde estão os suntuosos prédios que remetem a essa valorizada origem, caminham estes dois homens que, enquanto brasileiros fazem parte da maioria da população, que é negra -segundo dados oficiais do IBGE -mas que, apesar da prevalência, é excluída dos privilégios que a própria população negra ancestral ajudou a erigir, vivendo nas periferias num estado de marginalização. Enquanto visitantes destes espaços periféricos, por mais que carreguem o olhar estrangeiro, são como as pessoas que habitam estes locais: negros que apesar de experienciarem no dia-a-dia a exclusão, o racismo, o preconceito seguem lutando pelo direito a uma vida digna.

O caminhar é ancestral a todas as pessoas que vivem na terra hoje, pois, segundo o historiador Jared Diamond, os primeiros seres humanos começaram a caminhar na África e de lá partiram em longas jornadas em busca do alimento e da sobrevivência. Sendo descendentes de africanos [mulheres e homens que aqui chegaram na condição de cativos e que com a abolição da escravatura em 1888 foram deixados à própria sorte, diferentemente dos imigrantes europeus que receberam incentivos (como terras) para participar do povoamento do Brasil] Leandro e Paulo estão dando continuidade a estes deslocamentos humanos, em busca de alimento e vida. A arte enquanto alimento da alma e também fonte de vida.

O projeto Arqueologia do Caminho é, portanto, rico em significados. Camadas com sentidos diversos que podem ser escavadas como num sítio arqueológico. Dependendo do olhar de cada um, dependendo da bagagem, da experiência, da área de atuação, da origem, é bem possível que cada pessoa que tiver acesso a este livro o entenderá de uma forma diferente. Mas é importante não confundir com um simples álbum de fotos de Porto Alegre, pois isso é o que ele menos é.