A RECONSTRUÇÃO POÉTICA DO COTIDIANO
Maria Margarita Santi Kremer [artista plástica, professora, pesquisadora em arte e consultora para projetos culturais e pedagógicos]
Aprender a desenhar é aprender a ver. Laura Fróes inicia a prática de desenhar muito cedo. Os desenhos transformam percepções e pensamentos em imagens. É o preâmbulo de uma linguagem toda própria com a sua sintaxe, com a sua gramática, com a sua delicadeza, com a elegância de nos ensinar a como pensar com os olhos. O estudo da figura humana, rigoroso, aconteceu de forma natural, independente e particular, e surge antes de sua formação acadêmica no Instituto de Artes da UFRGS. O uso da tinta se une aos demais elementos do desenho ao longo da graduação. As aguadas, as transparências sobre papel, serviram de cenário e fundo para as relações espaciais entre todas as formas que passaram a compor seu repertório de imagens. Paisagens improváveis, céus e horizontes invertidos, nuvens, águas, corações, flores, coroas, cornucópias, dourados, portais. Logo irá abandonar as grandes superfícies de tintas transparentes para substituí-las por peles sintéticas coloridas, espumas, tecidos estampados. “Uma escolha pelo suporte que mais se integre aos objetos que comporão a obra”.1 Escolhas de diferentes suportes para conversar com os mais diversos objetos. Ela é ágil em decidir qual meio irá escolher para acomodar a forma certa, que abrigará o conteúdo necessário do que quer nos dizer.
Das coleções
As coleções/repertórios da artista são de objetos cotidianos retirados das suas funções utilitárias, reposicionados e inter-relacionados. Para reposicionar estes objetos: decalques, adesivos, pequenos recortes em feltro, couro, rendas, flores de plástico, figuras da história da arte, chaveiros de patinha de coelho, badulaques, artigos de armarinho e das lojas de 1,99, procede com a costura e a colagem. Tanto os procedimentos sem demora, como a reflexão de que estamos inundados de itens de produção barata, resultam em uma mudança na relação de importância entre fazer novos objetos e escolher entre os que já existem. Cabe destacar que a escolha pelo pronto é requintada e ocorre na medida da carga simbólica do afeto e deslumbramento suscitados em cada objeto e da finalidade de utilizá-lo onde realmente importa.
Da necessidade da poesia e da estetização no cotidiano feminino
Amor bordado, amor colado, amor em círculos. Ser a dona de casa, cantar o canto da sereia, cuidar do amor, arrumar a casa, esticar o lençol, fazer a cama. Amor colado, composições e recomposições, cuidar das filhas, cantorias, melancolia, lantejoulas. Lavar os pratos, secar a louça, lavar a roupa, estender, pendurar, secar, dobrar, guardar. Comprar, consumir, cozinhar, pagar contas, trabalhar para o pão de cada dia. Trabalho do lar que se repete todo dia, perpetua a angústia de uma rotina imposta, e que não deixa outra opção. Do esgotamento nada fica, a não ser enfrentá-lo com a construção de um discurso poético sentido, planejado, com silêncios e sutilezas.
As almofadinhas e as etiquetas
A “almofadinha sereia”, uma peça de 1996, feita da estampa de uma velha camiseta que Laura havia mandado imprimir para o namorado – e que trazia a imagem de uma sereia sentada nas pedras, originalmente um quadro de eucatex comprado em uma flora do Mercado Público – marcou o primeiro trabalho que assume totalmente o suporte de tecido. Em outubro de 1997, em sua instalação no projeto Plano B, montou um conjunto de diferentes almofadas/objetos carregados de significados e simbologias do feminino e do afeto. Na sequência participou do Remetente (1998) e da exposição de 10 anos do Projeto Fahrion (1999). Aqui, um hiato até a primeira almofada feita de etiquetas de roupas (àquelas com os códigos de lavagem e conservação que muitos retiram para não incomodar), em 2004. Na lida doméstica, aqueles pequenos símbolos intrigavam e atraíam, por suas cores, diferentes sequências, muito mais do que pelos significados – a sociedade de consumo tem suas próprias regras e as etiquetas de qualidade, de tecido, bordadas, vão sendo substituídas pelas descartáveis. A necessidade de capturar esses artefatos em processo de extinção faz a artista querer aumentar vertiginosa e quantitativamente a coleção de etiquetas. Em janeiro de 2005, mobilizou amigos e conhecidos. Recolheu o material em algumas casas ou recebeu doações dos que se dispuseram a cortar. Isso até propor uma ação dentro da programação do Fórum Social Mundial, na qual, com uma tesoura na mão e uma abordagem direta, interpelava os transeuntes do Fórum no Cais do Porto a doar as etiquetas das roupas que estavam usando. A experiência foi uma jornada de três dias, sem metas, desconhecida, uma jornada durante a qual se buscava um protagonista escondido em golas, nos cós, nas laterais, junto ao fecho das calças jeans, que fez alguns dos participantes se exporem, se virarem do avesso na intenção de colaborar. Uma coleta de um objeto anônimo, industrial, serial, provocando pequenas discussões sobre seus signos incógnitos e ilegíveis que ali serviram à ação/instante para depois servirem ao objeto artístico/estético. A série de almofadas de etiquetas elaboradas a partir dessa ação integrou a exposição 3X4 construindo a identidade, a primeira ação conjunta do grupo 3X4, na Galeria Xico Stockinger da Casa de Cultura Mario Quintana em Porto Alegre, em junho de 2005.
Dos projetos inconclusos e que ainda não aconteceram
São tantos planos e ideias, antes de projetos concretos, alguns dissipados pelos entraves da execução, outros por meras questões prosaicas (falta de recursos econômicos, falta de tempo, falta de perseverança ou procrastinações frente à possibilidade de um dia nunca realizá-los). Num deles, despertada pela novidade de uma máquina de pintar unhas com imagens programadas no computador, uniu a tecnologia com a história da arte. Fiz parte dessa experiência. Fui convidada pela Laura a ser uma das mãos a receber as imagens de mulheres em frente a espelhos que ela buscou na iconografia da arte. De Rubens, Klimt e Lichtenstein, foram as imagens selecionadas de uma infinidade de representações. Marina Camargo, artista visual, foi a outra colaboradora. Chegou o dia do experimento e meus dedos sangrando de tanto roer as unhas precisaram de um artifício urgente. A máquina imprimia as imagens ícones da vaidade e da introspecção feminina diretamente nas minhas impressionantes unhas de plástico, que depois foram fotografadas. 36 37Aliás, o espelho é recorrente na obra de Laura. Lembro, assim, de repente, de minha almofadinha de tecido verde com a palavra espelho bordada em letra cursiva, que ela me deu num momento da minha vida em que o que eu menos queria era me olhar. Do recomeço e a epifania Tendo mantido, entre 2006 e 2012, apenas as participações pontuais no projeto 3X4 Vis(i)ta, em outubro de 2012, com a exposição Corte-Dobra – individual na Casa de Cultura Mario Quintana, por meio do edital do 2° Prêmio IEAvi (Instituto Estadual de Artes Visuais) –, Laura Fróes marcaria a retomada aos trabalhos. O empenho para tal fim tornou-se um laboratório. Um laboratório, lugar próprio para uma junção de partes divergentes, frágeis e parciais, onde se pesquisam meios para unir, separar e recombinar. Laura observou formas, linhas e cenas de cinco trabalhos em papel de grandes dimensões feitos nos anos 1990, que estavam armazenados sobre o seu roupeiro desde lá e, por isso, muito danificados em sua conservação. Destes, surgiram novos formatos cortados com estilete no tamanho de 22 x 22 com, numa espécie de reaproveitamento, de reedição. O restante do que não foi cortado em cada um dos suportes, ao fim do processo, foi livremente dobrado, sem intenção nenhuma a priori, mas nessas dobras se identificou a linha mestra de ligação com o fazer e com o tempo passado. Tempo. Em 2014, no Atelier Jabutipê, a exposição coletiva Tempo que se mostra serviu aos propósitos da epifania de 2015, que assegurou uma retomada mais concreta, com a nova rotina no espaço de um ateliê. Enquanto a busca pelo descobrimento do eu indivíduo, do eu artista, é permanente, o reconhecimento e a valorização das múltiplas mortes possíveis durante o processo de desconstrução e construção do eu também são necessárias para a percepção de novas subjetividades. A epifania também é a morte do eu, também é renascimento. Enquanto a artista propõe destruir e reconstruir sua obra, paradoxalmente, não abandona o encontro com o novo eu e procura desvendá-lo, por dentro e por fora.
1 ALFONSO, Luciano. Artes Plásticas, anos 90. In: Porto&Vírgula, Ano III, nº 22, ago. 1995. 32 33A