Canteiro arqueológico da cor: um elogio da sombra na obra “Série Seis Pinturas” de Flávio Morsch
Umbelina Maria Duarte Barreto [artista visual. Graduação em Artes Plásticas, Habilitação Desenho e Pintura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Doutorado em Educação pela UFRGS. Professora da UFRGS e Coordenadora do Curso de Artes Visuais]
Sobre o artista e a abordagem da série
O texto focaliza uma série de seis pinturas denominada “Série Seis Pinturas”, da obra do artista plástico brasileiro Flávio Morsch, realizadas entre 2011 e 2012. O artista nasceu em 1963, no Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, realizou a formação superior no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e tem desenvolvido um trabalho em pintura há 20 anos. O início de sua carreira foi impulsionado com uma premiação que lhe possibilitou a estada de um ano em Nova York, onde iniciou os estudos sobre cor. Nos últimos 10 anos tem se dedicado exclusivamente à pintura, tendo participado de exposições com alguma regularidade, além de manter um trabalho diário e efetivo em atelier. Em 2011, o artista fez uma viagem à China, fotografando e percorrendo o país em grande parte de sua extensão, e, a partir de então, elaborou a série de pinturas apresentadas na [Figura 1. Pinturas de Flávio Morsch. Série Seis Pinturas, Acrílico sobre tela. Seis telas de 84 cm × 84 cm, 2011/2012] , a qual se passa a focalizar no texto como um objeto complexo que é definido como um objeto/ lugar artístico denominado “Canteiro arqueológico da cor,” considerando, principalmente a aparência holográfica/ hologramática das imagens. Para a elaboração da escrita sobre a poética visual da obra, parte-se de uma visão investigativa que permite trazer à luz também as forças envolvidas no processo de criação, enfatizando a concepção complexa articulada ao conceito de rede espacial, como constitutivos da série. A obra pictórica do artista é apontada como uma estrutura dinâmica que se constitui a partir de duas forças — mudança e conservação — que geram rupturas e deslocamentos em recursividade no desenvolvimento da corporeidade da série. Especula-se sobre a necessidade da cotidianeidade na definição da obra de Morsch, e se relaciona a presença do imaginário e da resistência, como um posicionamento político em que se leva ao extremo o que ainda não foi visto/ dito, mas utilizando para isso os próprios meios do que, aparentemente, já foi totalmente visto/ dito, e ainda, constituído dentro do universo pictórico. Nesse sentido, no desenvolvimento do texto, o artista Flávio Morsch vai sendo transformado em um arqueólogo que busca reunir o visto e o não visto em recursividade no tempo, definidos em contrariedade ao se configurar a sua pintura como um canteiro arqueológico da cor. No transcorrer de todo o texto vai sendo entretecido um estreito diálogo com o conceito de estrutura autopoiética, proveniente de Humberto Maturana e Francisco Varela (1984), enfocando-se a série em uma relação que acentua o caráter complexo da obra, mas, principalmente, trazendo à tona a perturbação causada pela emergência da contrariedade entre a luz e a sombra proveniente da estrutura da obra, através da captura do olhar durante um tempo que vai sendo matizado em diferentes frações ao tentar dar conta simultaneamente do que se expande externamente e do que vai constituindo a imagem internamente em um contínuo movimento da temporalidade da obra.
- Corporeidade da série
Como o artista, quer-se situar o leitor no próprio processo de criação da obra ao fazer um texto com características que possam envolver potências cromáticas. Uma tessitura em que o espaço de enunciação se expande e se recria, ao se dobrar de tal modo que possa situar o processo de criação a partir da experiência que imprime ao pensamento um caráter especial, e possibilita que o mesmo seja impregnado por uma espécie de tônus, que já está presente no processo que se vai vivenciar. Passar desse estado passivo para a atividade que envolve a criação é participar/ partilhar de uma estrutura que se refaz e se recria a cada transformação em uma redefinição que reitera constantemente seus próprios limites, como uma circularidade entre a ação e a experiência. Nesse sentido, voltar-se sobre a poética visual de uma obra pictórica é também buscar a dinâmica que a constitui e que, reiteradamente, possibilita que se a reconstitua em sua trama de significação, confirmando a sua criação como um fazer na linguagem. Busca-se construir a Série Seis Pinturas de Flávio Morsch a partir do conceito de rede espacial, trazendo à luz toda a complexidade que este conceito abarca na atualidade, envolvendo construções e desconstruções, em que a profundidade passa a ser percebida unicamente pelas alterações emergentes da superfície, e em que a mudança e a conservação são as principais forças operativas. Mas não nos deixemos enganar por esta operatividade, pois é ela que também está no cerne da questão geradora da Teoria da Autopoiesis de Maturana e Varela, definida no texto “El Árbol del Conocimiento” de 1984, em que a vida é focalizada como um conhecimento e não somente como fenômeno a ser conhecido. No texto “El Árbol del Conocimiento” Maturana e Varela constituem o conceito de estrutura como um fazer, relacionando-o ao conceito de organização, e caracterizando-a dessa forma como uma estrutura autopoiética. Esta estrutura é fundante de um novo paradigma do conhecimento que focaliza a vida como um conhecimento, articulando o biológico ao cultural em uma relação sistêmica, que é também o princípio de uma rede, que não está em um espaço, mas constitui o próprio espaço. É dessa forma que o texto aborda esta série de seis obras pictóricas de Morsch, pois se acredita que para se construir na visão a experiencia das imagens é necessário recuperar através do olhar todos os deslocamentos e rupturas que a conservação da organização da cor na imagem tem definido como um princípio de sua própria corporeidade. Entretanto, percebe-se que esta recuperação ainda não é suficiente, pois, em um primeiro momento, passa-se a perceber a obra como se fosse uma estrutura holográfica e a superfície a ser percorrida pelo olhar, passa também a abarcar áreas que podem ser assinaladas e marcadas, mas nunca apropriadas, pois elas se definem sempre como um fazer na visão, uma experiência que tem que ser reiteradada continuamente a cada piscar de olhos, como se a cada vez o holograma se reconstituísse a partir de uma nova parte, sendo a recursividade o novo princípio dinâmico da corporeidade da série. Inscrever a visão no corpo da obra ou inscrevê-la na experiência do olhar, de qualquer modo implica na iteração recursiva da obra de Morsch que precisa ser abordada em compatibilidade ao seu caráter historicamente construído, enfocando-a como um objeto dado à visão sem prescindir do caráter de ato inaugural, possibilitando na observação da obra a visão investigativa trazendo à luz as forças envolvidas na sua criação.
- Cotidiano e reiteração
A concepção de textualidade que vai sendo construída, em que se pretende descobrir um sentido da obra a partir de um conceito, nos faz buscar algumas zonas de leitura que evidenciam a incompletude e inacabamento da própria leitura, e isso nos faz especular sobre a necessidade da cotidianeidade na definição da obra de Morsch. Nesse sentido, a obra de Flávio Morsch pode mostrar-se obsessiva, evidenciando a indissociabilidade do pensamento na construção de valores, afetos e sentimentos como uma obsessiva busca de sentido que vai se processando também como uma aprendizagem no viver. Em uma correspondência de esquemas mentais e esquemas físicos as cores utilizadas pelo artista são “canalizadas” em uma única direção que se inverte a cada sequência, repetindo o sentido da direção anterior ao gerar uma recursividade que vai modificando o sistema a cada mudança, até completar um ciclo completo de mudança, que enfatiza a cada vez uma das cores da sequência, definindo, dessa maneira, um lugar complexo, com muitos “achados” nas distintas etapas, que vão sendo demarcados como em um sítio arqueológico. Nesse cotidiano que se volta sobre si próprio e vai sendo reiterado em obra e texto tem-se a impressão que, ao se passar por inversões, repetições e recursividade, também é possível relacionar a presença do imaginário e da resistência, em que se leva ao extremo o que ainda não foi visto/dito, mas utilizando para isso os próprios meios do que, aparentemente, já foi totalmente visto/ dito, e ainda, constituído dentro do universo pictórico.
- O elogio da sombra
Utilizar-se do que tem sido visto/ dito sobre a pintura de Morsch, pode ser também simplesmente encontrar as complexidades presentes na obra encontrando o fazer-dizer do artista como a sua única possibilidade de criação definida em seu poder-fazer que se constitui no tempo como um poder-saber. Nesse lugar constituído no tempo, a sombra vai sendo cercada ao ir se constituindo como uma sobra na contraluz através do deslocamento percursivo da cor, definindo o corpo pictórico da obra como um sítio arqueológico da cor. Nesse sentido, nas rupturas entre o que está a ser dado pela obra e o que foi construído no desenvolvimento do texto, entre o sistema encontrado e o existencial pressuposto, o artista Flávio Morsch vai sendo transformado em um arqueólogo ao se redefinir a sua pintura como um canteiro arqueológico da cor. E nesse novo lugar, assim constituído, vai se encontrando, cercando e documentando um universo de sombras que se vai percorrendo maravilhado por miríades de cores que voltam a parecer ser impressas em nosso olhar por uma simples luminosidade proveniente da luz.
O fazer-dizer de uma obra pictórica
Tentar construir um universo valorativo de uma obra de arte sempre vai implicar deslocamentos entre o fazer e o dizer, entretanto é justamente nesses espaços assim gerados que se pode aproximar a obra de seu caráter universal ao se dizer dos diversos modos em que se poderia refazê-la. Um desses modos de apropriação situa-se entre corpo e cotidiano da obra que está a ser abordada. Em uma pintura, o envolvimento pictórico dá-se na busca da relação primeira entre o produto e o processo, de forma a que o leitor possa se sentir contemplado com todas as pistas que vão sendo deixadas neste trânsito.
Referências Maturana, Humberto e Francisco Varela (1984) El árbol del Conocimiento. Editorial universitária, Santiago do Chile; 1984
Figura 1. Pinturas de Flávio Morsch. Série Seis Pinturas, Acrílico sobre tela. Seis telas de 84 cm × 84 cm, 2011/2012]