Desenhos
Kathrin Rosenfield
Os desenhos de Olívia Girardello nos olham. Olham intensamente. Sequestram o espectador para uma redoma encantada. O que fascina naquela redoma? Talvez uma intensidade serena. Algo como alegria e pesar emanam desses desenhos cujas figuras e objetos podem parecer ingênuos – mas a ingenuidade na arte é sempre um engodo; a simplicidade artística requer artifício e abstração, e o enigma dessas obras está no modo de obter essa aparência “simples”.
Há uma aura peculiar nesses desenhos que partem do mais próximo e óbvio – desenhos que reúnem coisas familiares: a mãe, as filhas, os bichos da casa, interiores com seus objetos e apetrechos, seres e pessoas do trato cotidiano. Não são bem eles, mas algo que nos contempla através deles captura a atenção e a faz atravessar as máscaras do semblante. O que se torna visível nessa redoma são as sutis transformações da vida, os deslocamentos desde a juventude até a idade avançada, o amadurecer e o sofrer que gostaríamos de ignorar; são processos imperceptíveis que vemos ali: adivinhamos num rosto aberto a retração inquietante e imprevisível da adolescência; uma outra figura detalha as involuções da velhice e da enfermidade, o olhar que se fecha… e, no meio de tudo isso, os olhos de um cão deitado no fofo de um sofá contam sua história – história de abandono e resgate; o não-olhar de uma moça dormindo com seus dois bichos é uma verdadeira narrativa do recuo (de hesitações e resistências?) que talvez anuncie graves transformações.
Em lugar algum há acontecimentos significantes, nem ações – apenas uma presença singela; a candura, a espera do que está por vir dá um ar criatural às figuras humanas, e essa afinidade com o olhar, e o modo de ser dos bichos conecta os humanos de Olívia com aquela enigmática dimensão da existência que o poeta Rilke chamou de “melodia das coisas”. Ela emerge de uma experiência vital – da “melodia de vida” –, definida como um fundo da experiência comum a todos e que se revela “em coisas e cheiros, sentimentos e reminiscências, crepúsculos e saudades”. Na realização individual, esse fundo é encoberto pelos “estilos individuais que complementam e completam este refrão ou tom todo abrangente”.
Entrando em sintonia com essa melodia, o artista se funde com o silêncio das coisas, ele se abandona a algo que não pode ser dito. Confiar na harmonia que escapa às palavras, deixar-se carregar pelas tonalidades e atmosferas da melodia (que é algo totalmente diverso da letra de uma canção), é soltar-se das palavras e adentrar uma terra vasta em que os seres humanos, os animais e as coisas têm o mesmo valor. É essa uma das mensagens que emana desses desenhos.
Nesse espaço aberto, humanos, bichos e objetos nos são oferecidos naquilo que são para além dos conceitos: algo como ilhas, cada ser isolado no seu foro íntimo, mesmo que estejam reunidos; as figuras e os bichos, ora deitados juntos numa cama, ora sentados bem perto num sofá – não importa –, são como elevações silenciosas e distantes; sempre sentimos que cada um é singular como um pico afastado do outro por profundos precipícios. Com toda sua placidez e apesar da alegria das cores, os seres tão familiares têm a gravidade de ilhas pristinas, de píncaros elevados e isolados. Cada um é único, muito embora queira se perder na companhia do outro. E, de ilha em ilha, diz Rilke, não há outra possibilidade: “temos que ousar saltos perigosos, arriscando mais do que pés e tornozelos”. Pois a eternidade desses seres é apenas um momento na iminência da metamorfose, um momento repleto de esperança de acolhimento. E embora dois seres possam tornar o risco de saltar um ao encontro do outro, “seu encontro se dá apenas no ar, e depois desta troca penosa e fugaz, ambos terminam tão afastados” – aterrissando um longe do outro, como antes.
Eis a melodia de fundo dessas obras, nas quais cada ser e cada objeto está às voltas com o fardo da solidão existencial irremediável. O ar de perda que já sopra quando pensamos na vida tão curta dos cães, ou na velhice de um ser amado, ou apenas na iminência de uma nova fase, ou quando começa o imperceptível silenciar de tudo na idade: o que torna tão encantados e encantadores os seres dos desenhos de Olívia Girardello é seu ar misterioso e pensativo que sabe do desamparo estampado com tanta graça nos rostos dos cãezinhos de rua, mesmo depois de resgatados e sentados num sofá.
Mas, do fundo dessa melodia melancólica, os lápis de giz pastel da artista resgatam esses seres perdidos em contemplações inquietantes. Suspendem-os por fios invisíveis que fazem surgir algo que todos eles têm em comum, algo que se estende por baixo deles e os segura, algo por sobre eles, algo que os leva a se inclinar de leve, um diante do outro.