A incessante fábrica de Lia Menna Barreto

Tapetes de jacaré, bobinas de sapo, pizzas de lagartixa. Produtos variados: vende-se a metro ou a granel, no varejo ou no atacado. Há 21 anos, a fábrica de Lia Menna Barreto segue funcionando incessantemente, nunca parou.

Lia se insere na esteira diversa da ousada Geração 80 da arte brasileira. Propondo experimentações de materiais e linguagens possíveis à criação artística, coube a essa turma de jovens artistas reinventar modos de pensar e fazer em arte, subvertendo formas de pintar, gravar, desenhar e esculpir, ampliando-se para uma cartela infinita de meios e procedimentos.

Em Fabricados, a artista apresenta parte da coleção de produtos derivada da instalação in situ Fábrica, obra emblemática da 4a. Bienal do Mercosul (Porto Alegre/Brasil, 2003). Na proposição, instalou uma sala de produção no meio do Armazém A5 do Cais do Porto. Quadrado, com divisórias de PVC e vidro, o chão de fábrica mantinha um regime de produção onde nós, operários-assistentes, produzíamos, em série, dezenas, senão centenas, de objetos modulares, a partir de bichinhos de brinquedo. Para a realização das tarefas do dia, repetindo uma técnica de prensagem criada pela artista utilizando ferros de passar roupa, água e papel manteiga, montávamos objetos de aparência estranhamente familiar a partir da manipulação de sapos, lagartixas, jacarés, ratos e cobras de borracha, famosos itens de preço barato das saudosas lojas de 1,99 ou made in China. Construíamos tapetes, mandalas, estrelas, flores, bolos e pizzas.

Na ocasião, a obra viva exibia ao público, do horário de abertura ao encerramento de suas operações fabris, o pensamento de uma artista inquieta, revelado no labor e na fantasia do processo criativo. Temporária e efêmera, a fábrica se apresentava como um trabalho continuamente inacabado e, ao mesmo tempo, múltiplo em si. Nenhum dia era o mesmo dia na linha de produção pois, a cada 24 horas, acontecia de um jeito diferente, revelando-se como uma obra de difícil apreensão. Não diferente, a mostra que se apresenta hoje, continua fugindo da obviedade.

Na esperança de encontrarmos obras docilizadas no ambiente da galeria, a montagem e a exibição das peças subvertem a lógica de exposição e atualizam as regras de apreciação e consumo de obras de arte. Os fabricados de Lia voltam ao circuito como produtos, vendidos a metro ou em peças únicas, separados ou combinados, grandes ou pequenos, ao gosto do freguês. Um tanto irônico, a artista nos apresenta mais um desdobramento de sua constante, irreverente e espetacular produção.

Com 40 anos de carreira, a produção da artista atualiza o repertório singular de conceitos operatórios que traz em sua caixa de ferramentas: derreter, grudar, misturar e prensar ampliam-se para cortar, medir, negociar e outros tantos verbos de ação que seu trabalho demande inventar. Revela, portanto, que há sempre uma surpresa no caminho a surgir, que reconfigura continuamente as rotas do trabalho da artista. Pois, mesmo no ato insistente de uma comprometida e incessante produção, sempre abre-se espaço para o desvio. Surpresas do processo: o começo de uma nova linha de produção.

Sandro Ka

artista visual, professor e pesquisador (EBA/UFMG),

ex-operário-assistente da Fábrica.