O real RESISTE

Por Alexandre Santos
[Crítico e historiador da arte, professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS]

Os trabalhos que Luciano Teston apresenta na mostra Desenho e Só foram realizados entre 2020 e 2022, não por acaso durante o isolamento social trazido pela crise sanitária da covid-19. Trata-se de um conjunto de desenhos no qual salta aos olhos a pouca exploração da cor, principalmente relacionada ao uso principal do grafite e do preto e, por vezes, de técnicas mistas que incorporam de forma discreta o pastel e o aquarelado em linhas brancas e tons terrosos. Embora não seja uma estratégia geral de todos os desenhos escolhidos para a mostra, inicialmente a realização de alguns deles serviu-se de imagens fotográficas projetadas, tanto apropriadas quando de autoria do próprio artista.

Importante destacar que, além de bacharel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS, a primeira formação de Teston como arquiteto desenvolveu-lhe uma prática perspicaz de observação do espaço e do mundo à sua volta. Há alguns anos ele se dedica a um pensamento artístico sobre a aparência que as superfícies apresentam quando olhadas de forma mais detalhada. É nessa perspectiva que se pode pensar na influência que sua infância, entre pilhas de tecidos na loja dos pais no interior do Rio Grande do Sul, imprimiu em alguns de seus desenhos. Mas também no quanto as práticas recentes que o período que vivemos durante a pandemia, com seus novos aprendizados e percepções sobre o mundo doméstico, nos legou.

Os desenhos de Teston servem-se de imagens inaugurais que, ao serem recortadas em detalhes precisos, nos remetem mais uma vez à imagem fotográfica, através de sua semelhança formal com as fotografias polaroides. Talvez uma brincadeira do artista, cuja motivação seja nos confundir e dizer que seu trabalho não é fotografia, e sim, desenho. E, desse modo, que seus cobertores não são apenas cobertores, assim como suas pilhas de tecidos ou mesmo os detalhes de vestes em cujo jogo apurado de texturas podemos encontrar outras referências. Assim, por exemplo, que uma zona de sombra ou de luz produz linhas ou abismos através de traços de elementos repetidos; ou que as suas dobras e amarrações se transmutam em organismos humanos ou ainda em formas sexuais insinuadas.

Nesta perspectiva, os desenhos de Teston lidam com texturas ambíguas, ao mesmo tempo atraentes e ameaçadoras, humanas e animalescas. Pois, ainda que as imagens do artista possam trazer reminiscências de um mundo doméstico ou infantil que nos é caro, elas também deslocam nossa percepção de qualquer leitura precipitada sobre o real e, deste modo, podem evocar situações de violência, como as que vivemos nos últimos anos inspirados pelo negacionismo e as fake news de um governo de viés autoritário, para o qual a imagem teve um papel fundamental. Tanto o frio, quanto o calor, assim como a luz e a escuridão ou o desejo e o medo, estão igualmente presentes nos desenhos do artista e suas propositais aproximações entre o que é possível velar ou desvelar na aparência – ou edição – que imprimimos sobre o real.

Entre os trabalhos mais antigos da exposição, um deles remete à pelagem de um animal que forma um díptico com uma luva de metal destas usadas por açougueiros para se protegerem de acidentes no exercício cotidiano do corte da carne. Ao propor essa relação, o artista nos convida a uma irônica visão sobre os elementos que servem aos seus desenhos. Como se percebe, não se trata mais de um desenho puro, mas sim da constituição de um discurso artístico motivado pela estranheza e por relações que pouco imaginamos. A bela pelagem padrão de um animal que serve como abrigo ou proteção a um corpo humano, através de um casaco de vison, também pode relacionar-se à violência intrínseca que constitui esse ato. Por outro lado, a mesma trama que se percebe no desenho também está presente na própria luva de metal. É como se o artista estivesse perguntando: quem se machuca quando nos envolvemos com o fazer artístico e este propõe uma leitura apurada sobre o mundo?

Em outro trabalho, Teston lida com a ambiguidade a partir de uma imagem de uma pilha de prosaicas toalhas que se tornam outra coisa quando superposta a uma caixa preta que contém no seu interior um desenho estranho, cuja saturação das linhas pretas dá lugar a uma espécie de abismo. De que abismo nos fala o artista? O que o cotidiano tem a ver com o abismo? Parafraseando Arnaldo Antunes, em álbum recentemente lançado e não por mero acaso também realizado durante a pandemia, o que os trabalhos de Luciano Teston parecem nos convidar a perceber é que o real resiste. Talvez nossa única chance de compreendê-lo e atuar sobre ele.