Desenhos de Amélia Brandelli, uma união instável 

*Marcos Fioravante

No ateliê de Amélia, uma reprodução de Ophelia, pintura de John Evertt Millais, há anos ocupa uma das paredes deste espaço, compartilhado com fotografias, estudos, desenhos cegos, anotações e listas de supermercado e de farmácia. Os documentos vêm e vão, são substituídos semanalmente. Ophelia, não. Ophelia fica. Personagem de Shakespeare em Hamlet, a pintura de Millais representa o momento em que a jovem submerge em águas doces envolvida por plantas e vegetações; os olhos fixos, cujo ponto de vista miraria a copa das árvores que a envolvem e a boca entreaberta entoa um canto mudo. Como em estado de transe, a donzela parece sonhar. A semelhança fonética dos nomes das duas personagens – Amélia e Ophelia – também reporta à correspondência do estado absorto provocado por ambas. Com o que sonhavam instantes antes de se afundar em verde, água e folhas?

A exposição Desenho – assim mesmo, no singular, como uma concisa afirmação no presente – reúne obras de Amélia Brandelli. Partindo da complexidade formal do reino vegetal, a artista se dedica a reinterpretação de imagens de plantas, explorando as possibilidades do desenho. A busca pelas formas orgânicas das plantas e sua dinâmica mutável e que não se repete gera um espaço de cadência de um tempo vivenciado e praticado pelo desenho, lento e detalhista. Amélia nos apresenta uma natureza reconstituída e interpretada pelo desenho. A natureza, como entidade geradora e transformadora, encontra paridade com a natureza da criação artística, como um processo originário, de gestação, partilha e declínio. Essa relação nos leva a pensar o tempo natural: inapreensível, que escoa, a tudo trazendo e a tudo levando; e o tempo cultural: sistematizado, computado como horas de sessões de trabalho em ateliê. Um tempo de cultivo, de germinação do desejo manifesto pela manualidade do gesto gráfico. A prática do desenho se dá como resistência do corpo e do pensamento transferida para a ponta do lápis.

A grade e a divisão em módulos são exploradas como forma de organização e provocação do campo visual. Recurso tanto físico e operacional, quando enigmático, traz certa sistematização do fazer, ao passo que proporciona disjunções pelas margens justapostas. O espaço do desenho se dá ora como trama concentrada de um rizoma visual, ora como combinações desconexas da imagem. Se o desenho se faz pelas arestas, as margens do suporte de papel reiteram as fronteiras, provocando uma “união instável”. Os desenhos de Amélia Brandelli são um convite a adentrar a trama emaranhada da matéria e avançar os obstáculos das margens em uma unidade desigual. O lápis grafite, material amplamente presente na trajetória da artista, revela a crueza de uma relação direta, persistente e insistente. Em investigações recentes, o grafite em pó aparece solúvel em aguadas de aquarela explorando manchas, camada a camada. Sombras em meio aquoso e mineral. Ao contrário dos trabalhos a lápis, a agilidade e fluidez dos líquidos são intercaladas por tempos de secagem e decantação imprecisos. Já os desenhos a lápis-de-cor trazem uma pesquisa cromática de nuances e contrastes que recortam e se fundem ao plano do papel. A cor, com destaque para o vermelho sedutor e improvável, satura o apelo das folhas retorcidas com certa dramaticidade e leveza.

Por que desenhar plantas? Por que não desenhar plantas? A beleza das plantas de Amélia reside mais nos desencontros, no detalhe da falha, machucados da vida e do tempo, do que no aceitável (e “instagramável”) florescer. A dracena, que lhe acena ao sair e retornar a casa e oferece-lhe situações cromáticas distintas em dias de sol ou de chuva, é reencontrada no vasto arquivo de registros fotográficos impressos e em nuvem. O motivo das plantas se firma décadas atrás, como um recomeço ou reencontro com a prática artística. Os desenhos de observação feitos naquele momento confirmam e destinam a predileção por esta linguagem, reconstruindo uma ponte entre seus afetos, conduzindo a estes desenhos recentes. Com formação em Artes Visuais, Amélia foi também professora de desenho em seu ateliê e nas salas de aula do curso de design da ESPM, e destaca a prática e o ensino do desenho como forma de sensibilizar a percepção e o pensamento. Não por acaso o desenho é eleito como agente de resgate do fazer, junto das plantas domésticas que rodeavam o ambiente, como motivação para a observação atenta e para a resposta corporal, como uma ávida retomada do fôlego após emergir de um denso oceano. Ophelia, não. Ophelia fica.

*Marcos Fioravante é artista visual e doutor em Poéticas Visuais pelo PPGAV-UFRGS