Crônicas Atemporais – Clóvis Dariano

Curadoria: André Severo

A Ocre Galeria recebe, a partir de 27 de setembro (sábado), a exposição Crônicas Atemporais, mostra individual de Clóvis Dariano. Com curadoria de André Severo, a exposição apresenta um conjunto com mais de 40 obras que articulam fotografias, desenhos, pinturas e objetos, instaurando um território em que o real e o imaginário se entrecruzam e no qual diferentes tempos e linguagens dialogam para construir imagens que desafiam qualquer tentativa de precisão ou permanência.

Na obra de Clóvis Dariano, a realidade nunca se apresenta de forma pura: ela é atravessada pelo quimérico, pela contaminação entre linguagens e pela persistência de uma construção artesanal que devolve à arte sua dimensão de fábula. Desenho, fotografia, objeto, escultura, pintura, performance, música ou cinema — tudo se entrelaça em sua prática como se cada meio fosse apenas uma possibilidade transitória de dar corpo a imagens que não se deixam fixar.

Em Crônicas Atemporais, essa vocação para o trânsito entre suportes se intensifica. Originada em um projeto concebido durante a pandemia, no contexto de um período político desastroso e de catástrofes ambientais que atingiram o Rio Grande do Sul, a exposição propõe uma reflexão crítica sobre o consumo, o desperdício e a falência de modelos sociais que insistem em negar as transformações do mundo. Materiais pobres e frágeis, sempre presentes na trajetória do artista, assumem aqui uma dimensão política renovada: instrumentos de denúncia, mas também de reinvenção.

O diálogo entre artista e curadoria fez com que o projeto inicial — centrado na fotografia — se abrisse à totalidade da poética e Dariano. Obras de diferentes tempos se encontraram, revelando a persistência de uma investigação que recusa limites temporais e constrói imagens capazes de atravessar décadas sem perder atualidade. O resultado é uma mostra que, mais do que reunir trabalhos, compõe uma narrativa em suspenso, onde cada gesto de criação se converte em comentário crítico e poético sobre a própria existência das imagens.

Dariano considera que as obras presentes na exposição sejam comentários sobre diferentes materiais, diferentes ideias, mas com uma tradução simultânea e visualmente coesa. O artista se vê como um construtor de imagens e considera que no seu trabalho fotográfico ele necessita mais da mão do que do olho: “preciso da presença e da função do fazer artesanal para materializar ideias e depois fotografá-las”.

Em Crônicas Atemporais, essa dimensão se revela como uma espécie de testemunho: fragmentos que se erguem contra o esquecimento e que insistem em permanecer, mesmo quando tudo à sua volta parece ruir. “Este processo me possibilita criar coisas cuja existência não se enquadra no conceito de tempo; isso me leva a alcançar uma certa falência de exatidão e permite não me movimentar sempre na mesma direção”.

Vestígios no instante: um momento de suspensão parece respirar dentro de si mesmo. Não é pausa nem promessa, mas uma dobra onde o sensível oscila e a matéria treme; onde a imagem que se anuncia (mas que nunca se revela) já o faz em abandono – ou, ainda, em reinvenção. A criação, aqui, não se ergue como promessa de solidez; antes, parece querer mesmo se dissolver no próprio ato de nascer, desfazendo contornos, desarrumando certezas, abrindo fissuras por onde o sensível se espalha e tenta escapar. Movimentos a partir de um pressentimento: algo parece tentar se fixar e insiste, latente, pulsante, em sobreviver no intervalo oscilante que vincula a matéria ao intangível. Ao contrário do que talvez possa imediatamente parecer, nesta poética tudo se inclina para a mudança de direção, para uma espécie de nutação que faz convergir o gesto e o pensamento na busca (alguns diriam utópica) de qualquer indício de permanência — o encontro como travessia, a montagem como contágio, a escuta como princípio, a sugestão do corpo ou da paisagem (agora quase não mais visíveis) como territórios em deriva. É certo que parece haver um propósito – mais ou menos evidente, neste ou naquele trabalho – de justaposição; mas esse intuito não se traduz imediatamente em soma; e sim em contaminação, em uma erosão deliberada (e insistente) de fronteiras, em uma espécie de silêncio compartilhado onde cada resquício de imagem (sugestão), cada resto de matéria (precipitação), se deixa atravessar pelo tempo do sensível, pelo espaço da composição, pelo aparente vazio que se abre entre um e outro – entre uns e outros. Na sugestão desse vazio – que logo percebemos, nunca foi lacuna –, tudo hesita em distinção de iminência: memória e pressentimento, desenho e propósito, matéria e fantasma, palavra e ruído, tempo e lugar. Não se trata mais (se é que algum dia se tratou) de elegia a qualquer recorte temporal mínimo a ser capturado pela câmera – em que um momento específico do fluxo contínuo da realidade é fixado em imagem –; tampouco de qualquer ponto de suspensão do tempo (em que a fluidez do real é condensada em uma única fração de segundo, revelando aquilo o que, muitas vezes, passa despercebido ao olhar); trata-se, sim – ou, no mínimo, trata-se agora – do instante que não se deixa capturar, que não pode ser convertido apenas em imagem, que se expande, se dobra, se repete, se esconde, volta, se perde e se reencontra – como se a própria duração do tempo (ou de um tempo que já desistiu de qualquer fantasia cronológica) fosse um corpo poroso onde o passado retorna e o futuro se dissolve. Não há linha, há vertigem; não há forma, há fluxo – e o que se oferece ao compartilhamento não é a segurança de um território (ou de um meio, uma técnica, um procedimento) reconhecível, mas a estranheza de uma paisagem/corpo que se refaz a cada olhar, a cada ausência, a cada sopro de presença. Se a trajetória até aqui (e estamos falando de cerca de meio século de uma produção consistente, ao mesmo tempo experimental e coesa) pareceu conter certos momentos de estabilidade, a verdade é que a provisoriedade sempre habitou sua verdade. De fato, nessa poética, tudo sempre foi contingente e, justamente por isso, profundamente verdadeiro. O artista sabe (sempre soube, eu creio) que é só no risco da impermanência que é possível habitar o agora; ele é também ciente de que existe um intervalo entre o gesto e a matéria – entre a intenção e sua possível erosão – onde a criação não se pretende forma; mas, movimento, desvio, dobra – espelho opaco de um real que nunca se encerra no instante –; e que nesse intervalo (que é o próprio ambívio do sensível) tudo é travessia, tudo é risco. Não estamos falando – e isso já deve ter se mostrado evidente a esta altura –, de uma poética que valoriza a instabilidade como recurso retórico; mas de uma trajetória criativa que se entrega aos desvãos do sensível e persiste na busca pela vibração do instante que não se fecha; é uma poética que sabe que na imagem tudo se refaz enquanto tudo se desfaz; que tem consciência de que, no sensível, o encontro é a única estrutura possível – mesmo que essa estrutura tenha se tornado porosa, cúmplice daquilo o que a atravessa –; e, principalmente, que é uma poética que tem compreensão de que a matéria no sensível é matéria que escuta, que se permite ser outra, que se oferece ao acaso, que se abre ao que nela se inscreve e reage como ritmo, contração, pulsação. Talvez por isso, aqui, cada imagem (ou sugestão de imagem) apareça sempre como um vestígio do que poderia ter sido, cada corpo (ou resquício de corpo) se revele, invariavelmente, um rastro daquilo que ainda deverá reverberar – não há um território a ser ocupado; mas sim um campo de forças em transição, um espaço de convergência e dispersão, um organismo que se monta e se desmonta na medida de seus próprios deslocamentos, de suas próprias variações e oscilações. Ao contrário do que, para alguns, possa imediatamente figurar, essa obra não é testemunha da passagem do tempo; ela é a própria passagem do tempo que abandonou a medição e se entregou à busca de sentido nos instantes raros e irrepetíveis em que algo essencial se revela. O iminente antes do agora, o vestígio antes da ruína, a matéria antes do nome: no sensível, o tempo não cessa de se dobrar sobre si mesmo e cada instante de cada vivência carrega em si a memória do que já foi e o prenúncio do que pode vir a ser – nada pode ser fixado, tudo se dispersa, tudo se contamina, tudo escorre na fenda por onde o visível se esvai e a matéria ressurge. Depois dela mesma, antes dela mesma, a obra existe antes da forma e depois do colapso; o olhar nunca alcança o contorno total porque o contorno não se completa, porque o espaço nunca se oferece por inteiro, porque o tempo não se contém em si próprio.  No sensível, o que se ergue está sempre prestes a ruir; e a obra não é outra coisa senão a urgência que resta quando tudo o que parece sólido começa a se entregar ao fluxo incontrolável da deriva de sentidos. Entre a lembrança e o esquecimento, entre a ruína e a edificação, entre o que se mostra e o que se recusa a aparecer, entre aquilo que se faz tangível e aquilo que permanece latente, pulsa a única certeza possível: a arte — assim como a vida que lhe confere sentido — só existe naquilo que escapa: vestígios no instante.

André Severo

Crônicas Atemporais

Clóvis Dariano

Curadoria: André Severo

Abertura

27 de setembro de 2025, sábado, das 11h às 14h

Visitação

29 de setembro a 25 de outubro de 2025

Segunda a sexta, das 10h às 18h

Sábado, das 10h às 13h30

Ocre Galeria — Av. Polônia, 495, São Geraldo — Porto Alegre, RS

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