REVERBERAÇÕES PICTURAIS
Zalinda Cartaxo
O que leva um pintor (sim, contrariando a tese antiespecificidade de Joseph Kosuth) a retomar estruturas picturais históricas referencialmente no seu trabalho? Não terá sido sempre uma questão na pintura? Retomar para desmembrar em novas estruturas acordadas ao tempo presente? Considerando que a pintura pensa (como defende Didi-Huberman) e que a mesma encontra-se alicerçada por uma rede temporal que, incessantemente, reverbera no tempo presente alimentando, assim, uma cadeia pensante, podemos vislumbrar o fato de que toda e qualquer pintura (e obras de arte no geral) não é, em si, conclusiva. Configura-se como um aberto e necessita de novas leituras e enfrentamentos. É, portanto, o que temos no excelente conjunto de pinturas que Clóvis Martins Costa apresenta nesta exposição.
Se considerarmos o termo reverberação no âmbito científico, como fenômeno ondulatório relacionado à reflexão do som, veremos estar associado ao intervalo de tempo necessário para a percepção do som refletido por um obstáculo qualquer. Metaforicamente, não seria o que ocorre no âmbito da pintura? A necessidade de um tempo para a sua apreensão? O que justificaria a constante retomada de modelos picturais históricos ainda inconclusos na sua estrutura pulsante e pensante.
As pinturas apresentadas nesta exposição revelam as inquietações de Clóvis no que se refere ao status quo da pintura, em que confrontos improváveis configuram-se como verdadeiras equações a serem resolvidas pelo artista. Se por um lado o pintor Jorge Guinle promoveu tais embates picturais no campo da imagem (ao conciliar, por exemplo, Matisse com De Kooning), de outro modo, Clóvis opera no campo da estrutura, radiograficamente (quando confronta, por exemplo, Paul Klee com Sean Scully).
O olhar estrutural de Clóvis revela-se pela geometria intrínseca que, ora é claramente visível, ao utilizar os repertórios da mesma (linhas, planos etc.), ora é absolutamente sutil (ao delimitar e organizar geometricamente campos de manchas pictóricas). Sua geometria, ora está vinculada à revisão de modelos históricos de pinturas, ora vem da própria realidade, como, por exemplo, na sua pintura Portuária, em que o artista reorganiza a realidade pictoricamente. A relação com a realidade operada pelo artista se faz evidente, também, na escala adotada (nesta última pintura, 300 cm x 150 cm) promovendo, assim, uma espécie de potencialização da realidade-pintura.
Numa de suas pinturas, Pontal da Barra, Clóvis resgata a pintura de Richard Diebenkorn, Berkeley # 32, de 1955, tomando-a como agente problematizador. Como pintar hoje uma pintura de outra década e de outro autor? A apropriação, aqui, é notório indício de reverberação pictural em que, para um pintor, é urgente tal enfrentamento e colaboração crítico-reflexiva na sua existência (a obra original). Finalmente, o resultado, ou seja a pintura Pontal da Barra de Clóvis, acaba por constituir-se potencialmente nova e autoral, única, em que a sua notória filiação é recurso para conciliar temporalidades indistintamente.
Importante destacar na sua pintura Brenha a necessária referência à Paul Cèzanne (Álamos, de 1882). A escolha desta pintura revela o quão necessário se faz para Clóvis o fator dificuldade. Esta pintura de Cèzanne é cromática e espacialmente densa. E é a partir desta dificuldade que Clóvis oferece uma resposta pictural extremamente diferenciada. O artista reorganiza a estrutura do espaço, das cores, das formas, em que podemos observar, assim, o atravessamento da obra dos dois artistas. Relevante, também, o fato de Clóvis utilizar a tinta acrílica nas suas pinturas, o que, mais uma vez, confirma a prevalência da sua vontade estrutural sobre àquela imagética original. A plasticidade e maleabilidade da tinta a óleo confere resultados absolutamente distintos da tinta acrílica, especialmente no que se refere à fatura. Ao adotar a pintura Vista de Haarlem com Campos Claros, de Jacop Von Ruisdael, de cerca de 1670-1675, como “equação” para a sua pintura em acrílica, é notório o quão geométrico é o seu pensamento-pintura. Clóvis apreende campos pictóricos cromáticos numa espécie de síntese pictural, em que apenas o essencial deverá permanecer. A pintura como pele, que reproduz fielmente a vaporosidade das nuvens, por exemplo, aqui, não é mais necessária. Trata-se de um enfretamento crítico-racional, contudo, fundamentalmente, estético. Quando também utiliza a pintura de Vasily Kadinsky, Landscape near Murnau With Locomotive, de 1909, complexifica ainda mais tal operação, uma vez que Kandinsky também operava sua pintura pela síntese. Esta pintura de Clóvis, Trecho de paisagem com branco sobre fundo geométrico vermelho, personifica algo presente nas demais: uma espécie de mise-en-abyme potencialmente infinito.
Finalmente, a exposição Reverberações Picturais, de Clóvis Martins Costa, comprova com excelência como pinturas podem ser inteligentes, atemporais e agregadoras.
A ESPESSURA DO TEMPO
Clóvis Martins Costa (1974) viveu, durante muitos anos, às margens do lago Guaíba, na zona sul de Porto Alegre. Sobre a margem, em estreito contato com o ambiente natural, de fauna e flora exuberantes, quando optou pela carreira artística, desenvolveu um processo de trabalho que combina pintura, objetos e elementos naturais. Residindo atualmente às margens da Lagoa dos Patos, em Pelotas, desenvolve investigações que resultam em artefatos construídos vagarosamente. Utiliza elementos da paisagem na produção de obras pictóricas que passam por um lento processo de amadurecimento, numa abordagem poética de apreensão do tempo. Nesse conjunto de ações que envolve atenta observação da natureza e a autoanálise casual, também há a aventura da “deriva”. E o registro fotográfico da paisagem constitui-se numa espécie de inventário das coisas percebidas. As lonas, usadas como suporte para receber as tintas, são previamente enterradas, às margens de rios e lagoas. Em certos casos, esses suportes recebem impressões fotográficas da paisagem circundante, num quase ritual metalinguístico, em que as imagensse transformam em elementos das paisagens que as geraram, para ressuscitar como suportes de escritas pictóricas. Quando as lonas são desenterradas, retornam à superfície, impregnadas por materiais diversos, que trazem vestígios do passado em diferentes escalas: há o tempo geológico, há o tempo recente (caracterizado pelos elementos orgânicos em decomposição), há o tempo cristalizado nas imagens fotográficas, e, sobretudo, há o tempo subjetivo, formado pelas memórias do artista. No ambiente do ateliê, os suportes, “preparados”, recebem tratamentos pictóricos e cromáticos, de maneira a enfatizar certos elementos compositivos. Assim, as pinturas de Clóvis Martins Costa existem como dispositivos de condensação de experiências, resistindo à condição de artefatos estáticos e imutáveis, e desejando atingir temporalidades outras, muito distantes do presente fugaz.
Neiva Bohns, Porto Alegre, 07 de dezembro de 2021