P A P E L E J O S & C O B O G Ó S

Vai & vem, Lisboa & Porto Alegre

Virgínia Fróis

As viagens propiciam a criação. Carusto fala-nos da travessia do mar da memória de muitas  navegações. Temos notícia de porões de navios carregados de santos e azulejos para o novo mundo,sabemos das diferenças e das raízes comuns, conhecemos o barro cultural, a mater para a criação.

Em Portugal. Um tempo integral para a imaginação: casas caiadas e castelos, os mesmos azulejos, como se de uma rua flutuante se tratasse.

O contacto com a preparação do barro [1], a partir da sua ordem geológica e da sua possibilidade de transformação profunda pela queima a lenha – a olaria.

Na travessia os objectos de ligação estavam presentes, fragmentos de bonecas de porcelana e outros do corpo feminino, como uma possibilidade de se instalarem nas peças de olaria – submersos.Será que ao deslocar-se do seu habitus, circulando por outras geografias com as suas coisas na bagagem se ampliam os sentidos?

Três salas abobadadas, a galeria

1/ Sobre o branco dos teus olhos, é o nome de um painel, que é agora de azulejo, mas começou como uma calcogravura sobre papel. Carusto cria esta peça por influência das suas deambulações na cidade de Lisboa, o seu olhar sobre a pele das fachadas de azulejos até ao azul do céu. Padronagens de diferentes épocas, cores e técnicas que estimulam o olhar vertical. Chegar perto e tocar percorrendo o desenho, a mancha, ver a luz reflectida pelo vidrado, a intensidade dos traços de tinta azul, amarela. O irisado do tempo.

Propõe-nos agora fechar os nossos olhos, e sobre este papelejo branco como o algodão e o caulino, pedindo o devaneio do táctil. O passar da ponta dos dedos como se fosse uma parede de cal centenária ou uma toalha de adamascado.

Falamos de sentidos, da primeira impressão de um corpo, da pele.

Da ausência, da memória, do indizível.

2/ Paredes atravessadas por cabeças e pernas, duplos do mesmo bonequinho lívido de porcelana, que mergulha, imerge e emerge no plano profundo do vidrado.

Os vasos são depois o torso dessas figuras, em esforço esbracejando ou aconchegando-se uma e outra vez, brincando como um Saci.

Falamos de um sentir anterior, do estar no lar, da infância e dos úteros.

Do local de sombra por de trás de uma gelosia ou cobogó, de onde se vê sem se ser visto. Um local das mulheres.

3/ Desenhos a amarelos, azul e branco. Os óxidos de chumbo de ferro de cobalto. Sobre o barro rosado das olarias da Lisboa do século XVII, estes motivos, do lado de lá transformando-se em azulejos relevados. Um novo corpo rosa em terracota, novas apropriações formais orgânicas, aproximações agora aos órgãos internos das flores, o gineceu como motivo central.

Falamos do retorno subtil aos Vazocorpos [2].

Obscuros lugares onde a criação tem origem. Modela de fora para dentro e nesse fazer desenha um espaço em vazio como uma casa cega.

Na cerâmica, só o som do toque [3] denuncia a presença de uma fissura.

Vamos vivificando, encontrando o nosso sentido, reunindo nas viagens submersas os fragmentos dos mundos previsíveis e possíveis.

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1 Montemor-o-Novo, Oficinas da Cerâmica e da Terra

2 Dissertação de mestrado Vazocorpos (2003) e na tese de doutorado Minhas Mortes: encontros poéticos suspensos no tempo(2008)

3 O oleiro, na boca do forno, toca sempre na barriga dos potes, e este grito certifica a possibilidade de vida de cada peça

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 BRINCANTES

 Blanca Brites [2015, StudioClio, Porto alegre/RS)

 

Carusto Camargo fez sua formação no Liceu de Artes e Ofícios de SP e no Instituto de Arte na UNICAMP/SP seu estado natal, realizou pós-doutorado na Universidade de Lisboa quando iniciou a série Brincantes. Atualmente é professor de cerâmica no Instituto de Artes da UFRGS, onde coordena o grupo de estudos NICA (Núcleo de Instauração da Cerâmica Artística).

Na exposição BRINCANTES para a Microgaleria Arte Acessível do SudioClio, como o próprio título indica, está presente uma intenção lúdica que o artista explora através da   associação de fragmentos de bonecas de porcelana em peças que lembram vasos. São várias cabeças, braços e pés, colocados juntos em uma mesma peça, resultando em figuras que tentam escapar do espaço onde estão contidas, ai está o lúdico que Carusto explora através do nonsense. A disposição desconecta dos membros das figuras (imaginadas), passam também da ideia de lúdico ao de transgressão.

Para esta mostra o artista também traz pequenos relevos que partiram originalmente de azulejos e receberam os elementos de porcelana, já indicados, que ocupam o espaço central de visualidade. Salientando que os modelos apropriados, são de origem industrial, as cabeças, braços e pés são sempre os mesmos e se repetem.

Em seu trabalho Carusto não explicita a intenção de criar uma narrativa, no entanto, esta vai se construindo no olhar de cada observador que entra nesta brincadeira.