Beatriz

Gilmar Marcílio [filósofo e escritor. Vive e trabalha em Caxias do Sul, RS.]

O que significa a tela em branco para um pintor? Em que momento se instala nele a busca persistente por produzir algo que ultrapasse a realidade? O ato de criação artística é um passaporte para o mistério. Impossível tentar alguma tradução, pois o núcleo essencial pertencerá somente a esses seres que reinventam a ordem da vida a partir de seu singularíssimo olhar.

A admiração que uma obra desperta em nós acaba inaugurando a vontade de invadir a existência de quem a criou. Especulamos o que move e determina um traço, uma palavra, uma imagem. Impossível situá-los fora de um contexto premido pelo cotidiano. Esse mesmo cotidiano que é matéria-prima vital para o reino da imaginação. Assim, tornamo-nos discretos espiões e fazemos vigílias imprevistas para tentar amar ainda mais quem nos devolve a vida revestida com tal intensidade.

Se, por um lado, o tempo é um roedor, como nos advertiu Machado de Assis (1839-1908), ele é também a única possibilidade de clarear a admiração e o respeito que sentimos por alguém. Há mais de vinte anos acompanho a vida e a obra de Beatriz Balen Susin, certamente uma das criadoras mais originais e fiéis às suas verdades interiores que conheço. Mesmo assim, não ignoro a dificuldade em tentar radiografar o processo criativo e as razões que a movem, apesar de estar envolto em intimidade e reverência. Mas acredito que, nessa privilegiada relação, o afeto não compromete a avaliação crítica. Preservo o distanciamento necessário para tentar traduzir em linguagem o que sua paleta de cores imprime sobre o espaço desafiador de um quadro — mesmo daquele que ainda não nasceu, que ainda é só um pressentimento.

A observação persistente envolve-me de maneira atordoante nesse jogo de criaturas largamente humanas que habita cada composição. Entrar em seu ateliê é como fazer uma visita a um reino no qual somos “ampliados” através do espanto. Beatriz não cria para o aquietamento. Ao contrário, somos instigados o tempo todo a uma espécie de revolta silenciosa contra a morte da poesia. Essa mesma poesia que já não encontramos nas dobras de uma existência contaminada pela açáo. Se investigarmos com cuidado, descobriremos um certo desconforto em relação a tudo que pulsa. Sutil, no entanto. De insurgências que nascem não do grito, mas da tentativa de fazer brotar novamente o discreto espetáculo da verdade e da beleza.

Cada traço ou intenção tem o vigor de uma catedral. E é exatamente por esse aspecto, que transcende a interpretação do ordinário, que se pode continuar buscando quase infinitamente o que lá se vai encontrar. Um mundo que reordena a realidade, fazendo incidir no corpo e na alma de alguns passantes uma procissão de seres que pertencem à sua mitologia pessoal. E aqui, talvez, esteja um dos maiores méritos de sua pintura de fisionomia universal: a capacidade de diluir a fronteira que nos separa do sonho. Encontramos figuras que, num primeiro momento, podem nos causar estranhamento. Mas, a um olhar mais atento, percebemos que elas pertencem ao inconsciente de todos nós. Personagens principais desse grande passeio subjetivo que chamamos de vida e de morte.

Beatriz gravita com a mesma serenidade entre os ruídos de uma cidade grande e o mais espesso silêncio. Para ela, tudo é material que se deve recolher para usos futuros. É exatamente por isso que não existe em seu trabalho uma fronteira que distingue o banal do sagrado. Tudo é sagrado. A folha avermelhada que adormece no chão, o olhar pedinte de um cão abandonado, a página de um livro de Rilke (1875—1926), o traço dilacerante de Van Gogh (1853—1890) — sua admiração mais recorrente. Não importa que seu olhar seja subtraído de uma paisagem pura para habitar o ordinário. Também aí essa grande e pura artista encontra seu alimento.

Enganam-se os que pensam que ela se vale apenas de tinta para inventar seu particularíssimo universo. Ela imprime vertiginosamente o que em nós é um estado bruto de alegria

ou de dor e o transforma em algo próximo a uma epifania. Epifania entendida aqui como uma ascese, assim como o fazem os grandes místicos das tradições religiosas. Aliás, Beatriz é uma das pessoas mais religiosas que conheço. Embora não frequente templos ou não traduza seu espanto na repetição às vezes automática de ritos vazios, ela sabe promover, como poucos, o encontro de tudo com o todo. Uma espécie de Tao com feições ocidentais.

Se eu precisasse de uma palavra, de uma única palavra que pudesse defini-la, certamente seria esta: transparência. Nunca a vi hesitar na defesa de qualquer ideia na qual acredita; nunca a vi titubear diante do que a incomoda — qualidades quase em extinção nesses dias de agrados interesseiros e de modismos vulgares. Se, porventura, alguém duvidar de sua integridade como pessoa e artista, é só fazer um breve passeio através de suas obras ao longo de mais de quatro décadas para descobrir seu comprometimento com tudo que a envolve. Há, nela, um total descaso pelo choque estético, que geralmente resulta em algo vazio, inócuo e passageiro. Em seus trabalhos, vê-se a artesã compromissada com a sobriedade, com a memória e a sensibilidade.

Desconfio que não exista nenhum intervalo que não a defina como uma pintora legítima. Ela o é vinte e quatro horas por dia. Sempre está à espera de algum acontecimento interior, em êxtase permanente, não importa aonde o seu fazer a esteja transportando. Há uma fome que parece não se esgotar nunca, como um pássaro que precisa voar cada vez mais alto em busca de um cenário que o liberte da prisão do comum, do que já foi sentido. O resultado é que ela não se acomoda no espaço fácil das escolas que lhe trariam maior visibilidade, mas a um custo impensável. Mesmo que ela pinte uma flor, uma árvore ou um peixe, sempre estará lá o germe que habitou o cérebro e as mãos quase transcendentes de um Picasso (1881—1973), de um Klimt (1862—1918), de um Modigliani (1884-1920).

Desde que a conheci, não foi mais possível absorver a realidade como eu fazia até então. Ela me empurra com vigorosa suavidade ao encontro da cor. Cada fruta parece conter sua forma original, numa espécie de investigação platónica que quer subtrair a repetição para encontrar a matriz, a causa primeira. Assim também com um unicórnio, um rosto de homem ou de mulher, uma pedra que desbota sob o sol do meio-dia. Às vezes penso que Beatriz é uma espécie de irmã secreta de Clarice Lispector (1920—1977). Pouco importa a separação temporal ou geográfica entre elas. Há em ambas a busca pelo absoluto, mesmo que isso implique dilaceramento do que, para nós, já está posto como certo, como verdadeiro.

Penso no retrato da escritora Marguerite Yourcenar (1903—1987) que tenho sobre a minha cama e que foi pintado por ela. Toda noite, antes de dormir, olho-o atentamente como outros olham para uma imagem de Cristo ou de um santo de sua devoção. E o que sinto é, também, um fervor secreto que nasce dessa admiração e de uma certa suspeita de que entre os azuis, verdes e lilases posso reconhecer o perfeito, o sublime. E se eu me estender por outras paredes, lá também serei premido com uma sensação que se aproxima do sobrenatural — entendido aqui como um jogo de sensações que reconhece em nós algo mais do que a presença do sangue viajando em nossas veias. Um casal de amantes cavalgando através da noite, três figuras aladas que brincam de romper a gravidade, uma menina com o cabelo prata, criaturas mitológicas dançando dentro de uma caverna encharcada de luz… Quando a vida me parece insuficiente, é para dentro desses universos que viajo, como o mais afortunado dos homens.

Na arte, assim como na vida, a passagem dos dias vai deixando marcas que destroem ou impregnam as coisas de nobreza. Ao visitar o espaço onde Beatriz cria, esfera mágica que parece abrigar uma passagem para a alma, percebo a coerência que perpassa todo o seu trabalho. A assinatura num quadro acaba transformando-se em mero detalhe, pois seu itinerário está absolutamente presente em cada detalhe, em cada pincelada. Passo as mãos sobre as superfícies ora lisas, ora ásperas, e sinto-me estranhamente protegido contra essa orfandade que todos nós em algum momento sentimos. E sei, embora saturado de palavras como costumo estar, que não é através da linguagem que poderei traduzir a música que emana desse lugan Como me ensinaram os grandes mestres da tradição zen, acolho esse sentir serenamente, passivamente, deixando-me inundar por um oceano de cores que sangra o dia, suspendendo a prisão do corpo.

Há almas que nos fazem acreditar que a alma existe, disse Yourcenar. Penso nessa frase como uma espécie de frontispício que gostaria de colocar à porta de entrada da casa de Beatriz. Porque é assim que a vejo, como alguém sempre pronto para acolher os outros com generosidade, respeitando o mistério de cada um, suspendendo os julgamentos apressados. O visível e o invisível existem dentro dela como existe para uma criança a eternidade das horas. Quando quero limar o peso e a gravidade de alguns dias, sei que posso encontrar essa redenção contemplando uma obra dessa pintora que se insere na tradição dos artistas mais autênticos que se possa conhecer. Na ciranda onírica de seus personagens, encontramos todos nós, cada um à sua maneira, o testemunho de uma vida límpida, dedicada à expansão e ao aperfeiçoamento do espírito.