Rommulo Conceição – Duet(L)o

Igor Simões [Professor, pesquisador e curador de arte afro-diaspórica]

Sete fotografias de grande escala e 2 instalações compõem a exposição Duet(L)o, de Rommulo Vieira Conceição, na Galeria Ocre.

Cabe assinalar que, simultaneamente, seus trabalhos estão na mostra presença Negra, no Museu de Arte do RS. Talvez essa coincidência seja um caminho para pensarmos no papel que esse artista de rara afinação tem ocupado no campo da arte brasileira ou do que nomeamos ainda, não sem tensões, como arte afro-brasileira.

Percebam que muitas vezes ao longo do texto vou falar de como Rommulo subverte expectativas e revela outras possibilidades para além do óbvio, da primeira impressão.

Assim, também é esse papel ocupado por esse artista, que sai do centro da Roma Negra para esse pequeno pedaço de terra que se sonha Europa.

Cabe apontar, que durante muito tempo a ideia de arte afro-brasileira, esteve associada a uma falsa e essencialista ideia de temas negros. Ao longe, tentando até mesmo encerrar em uma ideia de estilo.

Desde o final dos anos 90, esse princípio foi rejeitado. Entende- se que estamos falando, hoje, de uma posição política: arte afro-brasileira é a arte produzida por mãos, mentes e poéticas de sujeitos pretos no Brasil.

Ainda assim, persiste uma falsa ideia que tenta identificar essa produção com um conjunto recorrente de temas. Em termos de mercado, instituições e expectativas talvez essa seja a leitura mais simples. Para não dizer simplória. Para não dizer perigosa.

Rommulo, mais uma vez, escapa do premeditado. A produção constante desse artista, foge completamente aos olhares incautos que tentem buscar elementos de uma pretensa afro-brasilidade simples e fácil.

Assim, a trajetória de Rommulo também foge do previsto e desponta em um processo de humanização do artista negro, que deixa de ser visto como um bloco, uma unidade e assim, afirma sua singularidade.

A justaposição de planos nas fotografias, a paisagem que vai além da paisagem como apreensão da natureza e nos joga para a invenção de uma natureza que só é possível nas regras do jogo artístico, está ali. Onde está a imagem? Nas gotas de chuva e orvalho? No céu, na mata, na rocha ao fundo?  Estamos falando apenas de fotografia ou mais além? Estamos diante de mais um convite de Rommulo a nos lançar para o seu próprio jogo de inventar miragens e usar como desculpa o que parece ser uma experiência da natureza?

Especificamente, nessa mostra, há ainda de se pensar no espaço interno e externo da galeria como um elemento de proximidade e distanciamento. Afinal, não deixemos escapar que em uma das fotografias, por entre gotas e luzes noturnas, surge uma pequena praça, e nela um brinquedo típico desses lugares: balanços, escorregador, aquelas cores. Lembremos então do vidro que mora na Estrutura Dissipativa: Trepa-trepa. Pensemos no vidro em dias de chuva e orvalho. Estamos no mesmo lugar? Estamos na mesma imagem? Estamos no jogo desse artista. Como ele mesmo me diz: “Uma coisa com múltiplas coisas dentro”.

 

Na montagem da Ocre, os enganos propostos por Rommulo se acirram. Estrutura Dissipativa: Trepa-trepa, um dos trabalhos da série que está em acervos importantes do Brasil, está aqui no jardim da galeria. Tudo no entorno, desde as árvores e toda a vegetação contribuem para simular a praça, o brinquedo, a ideia de convite ao espaço de lazer. No entanto, essa oferta nunca se efetua por completo. Ao que parece um jogo fácil, Rommulo convida à complexidade. As brincadeiras aqui são brincadeiras para gente grande. Há ali o vidro, seu reflexo, e tudo que ele inventa sobre espaço e arquitetura, que ele proporciona em meio a estrutura. Contradizendo a possibilidade de entrar na estrutura, é a miragem dos nossos corpos que ganham espaço em seu interior. Rommulo é afeito às miragens. Rommulo, está lá onde se pode falar do Trompe-l’oeil, a ideia constante de enganar o olho alcançando efeitos que são da ordem do engano, mas também da afirmação. Um tipo de real que só é possível por entre as malhas da arte.

As cores retornam como elementos que não nos podem escapar. Simultaneamente remetem ao lúdico, mas também à uma experiencia moderna como se encontram em vários dos trabalhos de Rommulo. Modernismo e modernidade é algo sempre a ser enfrentado, seja em suas fábulas, promessas e exclusões. Não falo à toa. É uma recorrência. Não por coincidência, uma das mostras recentes desse artista intitulou-se “Tudo que é Solido se desmancha no ar”. A frase de Marx é aqui um alerta: estamos em plena falência de um projeto de mundo. No entanto, o que resta dele como caminho para pensar políticas do sensível?

É desse tipo de sofisticação que falo ao evocar o trabalho desse artista. Dançar entre o repertório de fundo moderno e a mais intricada proposição de contemporaneidade é para poucos.

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Duet(L)o

Rommulo Vieira Conceição 

A exposição Duet(L)o é composta por duas esculturas e sete fotografias projetadas desde o ano 2015. A escultura “Estruturas dissipativas – Trepa-trepa – 2021” é a terceira da série “estruturas dissipativas”, que se soma às duas outas: “Balanço, 2011” (acervo do MAC-USP) e “Gangorra, 2013” (acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo). Esta série combina elementos lúdicos de parques infantis a outros objetos que demandam atenção para outros espaços relacionados ou não: doméstico, institucionais, público e privado. Essa articulação, embora esteticamente repleta de cores vibrantes convidativas ao convívio, contrasta com a impossibilidade do uso dos objetos. A escultura “Limite e uma pausa, 2022” foi recentemente construída e remete a elementos da arquitetura ordinária que são usados para estabelecer limites espaciais entre o público e o privado, entre o “Meu” e o “Seu”. Soma-se a estes elementos um banco, colocado como um ponto de cor e como um objeto de descanso ou desolação. A série de fotografias “entre o espaço que eu vejo e percebo, há o plano” foi iniciada em 2015-2016 e compõe de fotografias capturadas da paisagem em dias de chuva a partir de um observador dentro de um carro, ou no interior de uma habitação que avista a paisagem através de uma janela de vidro. A sobreposição das imagens retiradas da mesma paisagem sem mover a câmera de lugar quase no mesmo instante, mas com focos diferentes: na paisagem e no vidro molhado, faz com que dois instantes e duas percepções ocorram ao mesmo tempo. Provocam o espectador à compreensão de um todo composto por partes que somadas sempre serão maiores que o todo. Evidenciam a impermanência das coisas. Todos os trabalhos convidam o público a um dueto de percepções e ao duelo de suas apropriações.