DIGO DE ONDE VENHO

Paula Ramos [crítica de arte, professora e pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; texto da mostra individual Digo de onde venho – Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), Porto Alegre/RS, 2019]

Tal como personagem, a figura da menina se repete: ereta, desponta com vestido abaixo dos joelhos, braços em repouso, pés unidos, cabelos comportados, expressões facial e corporal serenas. Tudo respira controle e delicadeza. Sua frontalidade perturba, mas ela insiste em manter os olhos fechados, em silêncio e reflexão. Em que estaria pensando? A pergunta parece tola, mas a naturezada figuração e a recorrência da imagem nos autorizam a divagar. Então, conscientes de que, deste modo, acessamos melhor nossos sonhos e lembranças, podemos imaginar que a menina rememora, fantasia ou planeja sua própria história. Num contraponto à imobilidade do corpo, passível de descrição, temos a fluidez e a liberdade do pensamento.

A menina atravessa a produção recente de Mariza Carpes. Ela surge solitária e introspectiva em meio a ramagens, plantas, águas ou suspensa no espaço; em roupas, objetos, fitas, bonecas; em imagens produzidas, apropriadas ou retrabalhadas. A menina diante de seus caminhos, fantasmas, quereres. A menina e sua mãe. Mariza e sua mãe.

Durante anos a menina Mariza ouviu o tique-taque do relógio do balção, bem como o pedalar incansável de Ivone Fontoura Carpes alimentando o motor da máquina de costura “Singer”. Na cidade de Santa Maria, onde a família vivia, a mãe gozava de amplo reconhecimento. Seus plissados, bordados e entremeios para vestidos de festa eram famosos, e muitas foram as debutantes e noivas que ela vestiu. Como os irmãos, Mariza cresceu observando panos, linhas, rendas, botões, aviamentos, tesouras, moldes para roupas e o elegante manequim produzido no Rio de Janeiro, em 1955, a partir das medidas dela, Ivone. Quando esta parou de trabalhar, aquela começou a guardar.

Iberê Camargo, mestre e grande amigo da artista, escreveu que “a memória é a gaveta dos guardados” e que as “as coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar”. Sem surpresa, Mariza percebeu-se desenhando com linha e máquina de costura, sobrepondo e amalgamando pacientemente camadas de tecidos, papéis, palavras, temporalidades. Viu-se, igualmente, recolhendo flores secas, metais enferrujados, fotografias e impressos desbotados: matérias maculadas pelos anos, que passou a encapsular e a emoldurar, tal como relíquias.

Os artefatos antigos, familiares ou estrangeiros, preservados ou encontrados, conservam, cada qual, seus estilhaços de memória, nem sempre aprazível. Aspecto similar vale para os materiais novos, do papel vegetal, com sua transparência de incômoda opacidade, ao chumbo derretido, com sua plástica maleável e toxidade. Na mesa, repleta por cacos de vidro, por exemplo, estão vestígios de copos de cristal oriundos do enxoval da artista, quebrados por um pássaro libertário; eles são o início de uma operação que se estende há mais de 20 anos. Há leveza, mas também peso, reais e metafóricos. Há carinho, mas também purgação. “Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua”– Iberê, ele de novo.

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Digo de onde venho: o pessoal, o particular já na primeira palavra; o “eu” no início e no fim da sentença: digo/venho. Afirmação e movimento, com a segurança conquistada ao longo de décadas de continuada e sólida trajetória. O título da exposição assevera, portanto, a consciência e a maturidade da artista e aponta um eixo fundamental de sua pesquisa plástica: o mergulho em sua história pessoal e afetos. Ao mesmo tempo, o feminino, representado pela figura da mãe, da menina e dela mesma.

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NEM A TERRA, NEM O CÉU, JUSTAMENTE O MEIO

Paulo Gomes, 2012  [artista plástico, professor e pesquisador junto ao Instituto de Artes da UFRGS; texto da mostra individual  Nem a terra, nem o céu, justamente o meio – Museu de Arte de Santa Maria(MASM) Santa Maria/RS, 2012; Galeria Iberê Camargo (Usina do Gasômetro) Porto Alegre/RS, 2012;  Caxias do Sul/RS, 2013.]

Il  y a une immense différence entre voir une chose sans le crayon dans la main, et la voir el la dessinant.

Paul Valéry

UM CONVITE para escrever sobre o trabalho de um artista é sempre um desafio em dois tempos: o primeiro é a quase automática recusa, considerando que obras de arte não precisam de textos para ser; segundo que, se há de escrever sobre – e esse precisar é da ordem do desejo e das necessidades do sistema de artes –, o que escrever, evitando uma enfiada de obviedades ou, pior, um rol de coisas ao redor da obra, que nada lhe acrescenta, nem ajuda o observador?

O que dizer a um artista quando entramos em seu ateliê? Somente “vim ver o seu trabalho”? É uma temeridade para ambos, para o artista e para o crítico, pois o exercício de ver exige um preparo em, no mínimo, três níveis: o peerceptual, o intelectual e o emocional. É preciso estar aberto para olhar, que é diferente do ver, que é abrangente, mas geralmente mecânico e superficial; é necessário estar predisposto a imergir  no universo do criador, prenhe de possibilidades e indagações e, finalmente, é preciso ainda estar com a sensibilidade ativada, pois aqui o sentir é diferente daquele que praticamos no ofício diário de ver exposições, quando estamos alertas e frios, preparados para olhar, para operar as equações necessárias, para compreender e, finalmente, para tirar conclusões.

A primeira impressão frente a esse conjunto de obras é a de que estamos vendo desenhos. Digo isso porque a primeira imagem que vem à mente é a de um criador com seu pensamento gráfico em plena operação. Digo também porque conheço a artista, porque sei que ela é professora (nunca se deixa de ser professor, mesmo na aposentadoria; é antes um estado de ser do que uma profissão), porque percebo de imediato todos os indícios da metodologia rigorosa e sistemática ao olhar os trabalhos. Mariza Carpes é uma artista na plenitude, pois nela convive o domínio técnico do ofício, uma bem sucedida carreira, sua vasta e palpitante vivência como professora de desenho e ainda a experiência como administradora e gestora cultural. Essa professora é uma artista.

A ANÁLISE do processo de criação, a partir dos vestígios percebidos nas obras prontas, indica um modelo de prática rigorosamente sistemática: as camadas superpostas dos trabalhos deixam entrever todas as etapas da criação: o desejo, o projeto, os croquis, os estudos, a obra. Um levantamento dos procedimentos utilizados nos fornece uma lista generosa de recursos: as colagens, a costura, os alinhavados, o desenho, a pintura. Em cada um desses recursos, evidencia-se um embate entre os vestígios daquele desejo fundador, os dados da memória, o exercício continuado do sensível e a prática do fazer. Tão ampla quanto a lista de procedimentos, é a dos materiais utilizados: tela, papel, tecido, madeira, ferro, vridro, grafite, lápis, pastel, carvão, linha, cera para encáustica, muitas coisas achadas e outras tantas procuradas. A matéria com que são feitos os sonhos da artista tem tanta coesão e coerência que se torna difícil enxergá-la: vemos o todo da obra, vemos o desenho, vemos, quando muito, o todo da informação pretendida. O proceder por camadas, operando as justaposições, as sobreposições e o acúmulo, exige um adestramento do olhar. A manualidade, assim como o domínio do artesanato, é evidente; o que importa no final é a fatura que transforma as individualidades dos materiais em matéria de memória.

Pelos deuses, as claras dançarinas! Que viva e graciosa introdução aos mais perfeitos pensamentos! Suas mãos falam, e seus pés parecem que escrevem. Que precisão nesses seres que se dedicam a usar tão bem suas forças tenras! Aqui a certeza é um jogo; dir-se-ia que o conhecimento encontrou seu ato, e que a inteligência de imediato consente às graças espontâneas… Paul Valéry

À QUESTÃO posta, informou a artista  que o seu ponto de partida foi a dança, melhor ainda, o movimento, aquilo que faz a dança, isto é, o imaterial fazendo-se no tempo e espaço. Essa dança não está representada nos trabalhos expostos. Ela apresenta-se em potência, desdobrada nas diversas figuras que ocupam a superfície dos suportes, nos võas entre elas, nos inúmeros elementos que ajudam a ocupar o espaço. Não é uma descrição da dança, tampouco sua representação; é a dança enquanto acontecimento temporal: a ambição é a de torná-la visível através daquilo que ela imprimiu na sensibilidade do espectador, no nosso caso, a artista. Os desenhos aqui representados têm algumas qualidades distintivas que merecem ser destacadas: a relação entre as figuras e os fundos dos diversos trabalhos se dá num processo de evolução esquemática. Não há a pretensão de reproduzir as formas dos corpos e dos objetos, apenas configurá-los, deixá-los passíveis de serem reconhecidos, mas não identificados. A evolução se dá do esquemático ou configurado. Segundo Rudolf Arnheim, a percepção começa com a captação dos aspectos estruturais mais evidentes, deixando ao observador o trabalho de enquadrar o esquema enquanto forma, enquanto simulacro do real. Assim é que não há figuras nesses desenhos; a artista recorre àquelas formas sintéticas de configuração do corpo humano, tais como perfis e silhuetas. Antes manequins; depois, no observador, figuras? O outro aspecto distintivo desses trabalhos ocorre na dualidade entre representação e apresentação. A opção da artista é pela apresentação das matérias ao invés da representação das coisas. Trata-se, numa redução extrema, do mesmo processo de colagem dos modernistas: por que representar se podemos apresentar? Assim, a matéria dos sonhos permanece coisa do mundo material enquanto simula coisas do mundo ideal. Mais um aspecto distintivo é o do uso da cor: qual cor? Não percebemos de imediato as cores desses trabalhos: elas são pouco significantes, porque não agregam valores sensoriais. A bicromia desses desenhos, ora azuis, ora terrosos, simbolicamente figura o campo da ação desses trabalhos: nem celestes, pois não vão às esferas metafísicas, nem terrenos, pois não se detêm na simulação do real; são humanos, a justa medida entre o céu e a terra. Falam de coisas apreendidas pelos sentidos e compreendidas pela sensibilidade. Sintetizando, podemos dizer que esses desenhos são da ordem da apresentação, e não da representação.

O DESENHO foi o mote inicial desse texto: ao iniciarmos, falávamos de pensamento gráfico. Agora é necessário opor essa idéia a de um pensamento pictórico. A obra aqui analisada tem ambas as características: vale-se de recursos lineares para a configuração das formas e se vale de recursos pictóricos para a representação da densidade da matéria. Esse pensamento que nomeamos de gráfico é uma característica geracional: depois de décadas em que o desenho foi o exercício para o aprendizado da simulação do real e, após, a base sobre a qual se assentava a encarnação das formas através das tintas, na geração de Mariza Carpes ocorre o processo de independência do desenho enquanto técnica. Resultado da consciência de sua auto-suficiência enquanto técnica e de sua potência expressiva, associou-se a isso a revelação de que ele também podia ser tão nominativo quanto a pintura. A revelação do desenho enquanto um meio e também um fim para nominar as questões materiais e filosóficas do mundo tornou seus praticantes verdadeiros neófitos. Não importava qual tema, qual assunto, quais recursos materiais, qual a sua destinação: o desenho servia a tudo e a todos com igual eficiência e qualidade. Assim, toda uma geração tornou-se desenhista, posto que a técnica não era somente um meio, mas um fim em si mesmo: desenhava-se para ver, para apreender, para conhecer, para descobrir, e para revelar. Não é por acaso que o desenho pautou a formação artística de inúmeras gerações de artistas nas nossas escolas: ele era o campo aberto para experiências e experimentações que estavam interditos a pintura, cheia de regras, técnicas e impedimentos históricos; interditos também para a gravura, que exigia um rigoroso e quase monástico processo de iniciação; igualmente para a escultura, soterrada na tradição monumental, assim como para a cerâmica, presa no dilema entre o utilitário e a difícil autonomia enquanto escutltura. Assim foi que o desenho tornou-se o campo aberto dos afetos: as aulas de desenho eram momentos de trocas de informações, de intercâmbios de sensibilidades, de espaços de experimentação.

O desenho permitiu a Mariza Carpes a configuração da dança, mas também possibilitou a descrição do movimento e o mapeamento do entorno. Sobre o desenho já escrevi que temos a tradição, seguindo a norma renascentista, do disegno, literalmente o desígnio, a intenção da representação gráfica, que tem seu equivalente no termo inglês design, que é a perspectiva da representação dos objetos da existência humana. Mas não estamos limitados somente ao disegno e ao design, temos também o to draw ou o to draft dos ingleses, o risco ou o traçado, a representação gráfica pura, o abandono da tirania da representação das figuras na busca de uma feição externa com qualidades próprias, concreta e puramente plásticas.

SE À INDAGAÇÃO sobre qual era o seu ponto de partida a artista respondeu que era a dança, achamos que ela também deverá estar no fim buscado. Assim, entre a dança e o seu movimento, entre a representação e a apresentação, entre o desejar e o fazer, temos nessa extensa série de trabalhos o desenho como obra. O desenho como estratégia (usando esse termo de origem militar, tão caro aos nossos melhores desenhistas), ou seja, a arte de aplicar com eficácia os recursos de que se dispõe, visando ao alcance de determinados objetivos: nem a terra, nem o céu, justamente o meio.