TEXTOS DE/PARA ALFREDO NICOLAIEWSKY

“Alfredo […] prossegue com a pesquisa de apropriação de imagens fotográficas, anteriormente vinculada ao processo analógico e, atualmente, relacionada ao processo digital. Sua busca de imagens está centrada em filmes em DVD da década de 40 e 50, de onde são capturadas com baixa resolução e transpostas para ampliação em papel fotográfico, sem nenhuma interferência direta do artista. Esses recortes resultam em cenas de sobre/justaposições, já existentes em filmes e em trailers, mas que são imperceptíveis ao olhar menos atento ou desavisado, melhor dizendo ao de quase todos os assistentes. Tais imagens desviantes, distorcidas, alteradas, mas reais e concretas, provocam situações inusitadas de um estranhamento de significado surreal. São tempos que se unem, se tencionam, se chocam em situações limites, como a pertinente denominação dada pelo artista a esta série ‘No abismo de um sonho’, também apropriada do título da versão brasileira do primeiro filme de Fellini. ”

Blanca Brites (Curadora)

“Dois Artistas em Sintonias Diacrônicas”

Exposição na Fundação ECARTA / Porto Alegre / RS – 2005

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Juntar imagens é o meu procedimento usual há alguns anos. E, nesse espaço de tempo, procuro imagens que, saídas do cinema, retiradas de suas histórias, de seus contextos e associadas a outras, oriundas de outros filmes, ou aquelas que eu mesmo produzo, ao se encontrarem, produzam ruído. Algumas vezes, nada acontece no choque. Outras vezes, saem faíscas, como quando se atritam duas pedras, no contato entre elas. São essas pedras que procuro. Imagens, sensações e tempo que se encontram, que se fundem e se chocam. Imagens congeladas que ganham vida neste embate, entre si e com o nosso olhar. Sou como o Dr. Frankenstein que junta pedaços de corpos para criar um novo ser. Mas sempre corro o risco de que as imagens fiquem para sempre sem vida e que, das uniões dos pedaços, surjam apenas monstros. É a sina dos que se propõem a criar: nunca ter a certeza de alcançar seus objetivos. Mas é preciso sempre tentar.

Analisando toda minha trajetória, é possível perceber alguns procedimentos que me movem. Em primeiro lugar: a apropriação de imagens. Há muitos anos, desde 1983, venho tirando partido desse procedimento. Desde 1993, a utilização de imagens produzidas por outros transformou-se numa verdadeira obsessão, tornando-se, praticamente, meu único material de trabalho. Porém, a partir de 2016, no conjunto de obras aqui apresentado, consigo novamente associar imagens criadas por mim. O segundo procedimento que utilizo é a justaposição de imagens. Ocorre há quase vinte e cinco anos, e também nos últimos tornou-se, praticamente, meu único modo de criar. O porquê do uso destes procedimentos, não sei dizer. Não é algo lógico, racional. Apenas sei que é assim que acontece. Deixaremos, pois, essa questão como um enigma em suspensão. Parece-me então que não se trata exatamente da criação de obras com um clima dramático ou trágico. Mais do que isto, acredito que o tema é a criação de obras com muitas possibilidades de leituras. O fato dos trabalhos, mesmo apresentando uma possibilidade narrativa, não terem uma história definida a ser lida, lhes dá uma impossibilidade de entendimento completo, revelando seu caráter dúbio, enigmático, tenso. Poderia aqui aventar a hipótese de estar de alguma forma, simbólica ou metafórica, refletindo sobre a situação que o Brasil vive nos últimos anos – a produção do conjunto dos trabalhos aqui apresentados coincide temporalmente com a crise sócio-política e ética que se abalou sobre o País. Não excluo esta possibilidade, porém poderia agregar uma outra, que seria mais pessoal. Hoje, aos sessenta e oito anos, tenho uma visão e uma percepção do mundo profundamente diferente da que tinha aos trinta ou quarenta anos: mais realista, mais pessimista, mais desesperançada, onde fica mais evidente a dificuldade de entender o mundo e de aceitar as perdas. Um caráter enigmático pode, então, eventualmente estar contido em uma fotografia, mas, na maior parte das obras, ele surge da relação entre as imagens, do choque que se estabelece entre elas. Diante desses trabalhos, o espectador não estará como Édipo diante da esfinge, que lhe apresentava um enigma que ele deveria decifrar para não ser devorado. Diante das obras, o espectador poderia se comportar como as personagens de uma pequena história que extraí dos Cahiers du Cinema:

Durante a semana dos Cahiers du cinema, eu encontrei por acaso um velho amigo meu que estacionava, hesitante, na frente do “Olympic Saint-Germain”. Eu o aconselhei com muito entusiasmo a ir ver “Les Trois Couronnes du Matelot” e os outros filmes de Raúl Ruiz que estavam programados. Ele me disse com ar de sofrimento:

– Adoro Ruiz, realmente adoro, mas confesso, não entendo nada.

Eu respondi: – Mas não tem importância. Para que tentar entender?

(DUBROUX, Daniele. 1983).

 Alfredo Nicolaiewsky. “O que me move”.

“Arte/Cinema: do abismo de um sonho a outras histórias. ”

Exposição individual no Museu da Imagem e do Som / Florianópolis / Santa Catarina – 2020

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“A exposição Arte/Cinema: do abismo de um sonho a outras histórias inaugura um modo diferente de exibição das obras de Alfredo Nicolaiewsky. A produção da mostra é uma parceria do MIS-SC com a curadoria do LABART/PPGART/UFSM, para disponibilização online dos trabalhos no Facebook. Nada mais apropriado, para não dizer necessário, em tempos de contato reduzido firmado por nós, em função da Covid-19 e em prol da saúde de todos.

O título da exposição, elaboração conjunta entre artista e curadoria, toma emprestado o título do filme Abismo de um Sonho (1952), dirigido por Federico Fellini. Ao todo, são expostas dez obras: um vídeo, primeira experiência do artista, traz cenas de filmes e trailers preto e branco com sobreposições originais das imagens, adaptadas da narrativa cinematográfica para a linguagem videográfica; e nove imagens digitais, que estão publicadas no seu livro, A Ira De Deus – suas prequelas e sequelas (2017)

Sequelas, sequências de três imagens apropriadas, cortadas, justapostas e montadas que lembram a configuração inicial de um tríptico, são retiradas de seu contexto original, na sua maioria fílmico, e associadas umas às outras, incluindo as fotografias do próprio artista. Não há referência à fonte das apropriações, nem interesse do artista em divulgá-las, o que revela na autoria uma sutileza criadora investida de profanidade.

As obras se organizam como uma composição cinematográfica, a partir da concepção de montagem, de imagens sequencialmente configuradas na horizontal, com quadros fechados e abertos, pontos focais, profundidade, closes e planos, que em cada cena pulsam de modo inquietante para propor alguma narrativa.

Em cada trabalho, essa inquietação é provocada também pela associação temática das cenas mais ou menos contrastantes: seja tanto pela justaposição espaço-temporal das imagens captadas de distintos contextos; quanto pela dissociação gerada de imagens em constante embate; ou, ainda, por aquilo que o artista define como “faíscas ”, resultantes do que ele procura encontrar no choque [conceitual] das imagens.

Nesta exposição Arte/Cinema, potencializa-se o impacto e o encontro. Não apenas como zona de passagem entre corte e montagem, imagem e sentido, mas também como espaço-tempo do acontecimento poético. As obras aproximam o espectador tanto da tensão e da angústia do abismo de um sonho, quanto da profundeza de outras histórias, seja através de uma construção mental, de uma dimensão imaginária, ou uma experiência sensível. ”

Nara Cristina Santos (Curadora)

“Arte/Cinema: do abismo de um sonho a outras histórias”

Exposição individual no Museu da Imagem e do Som / Santa Catarina – 2020