Quando a casa é um barco
André Venzon
Para quem ainda não a conhece talvez se faça necessária esta ligeira apresentação. A casa-obra, do artista Carlos Trevi, é como a metáfora do barco de Michel Foucault:
[…] um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao mesmo tempo é dado à infinitude do mar. E, de porto em porto, de bordo a bordo, […], um barco chega até a colônia em busca dos mais preciosos tesouros que se escondem nos seus jardins. Perceberemos também que o barco tem sido, na nossa civilização, desde o século dezesseis até os nossos dias, o maior instrumento de desenvolvimento econômico […], e simultaneamente o grande escape da imaginação. […] Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos. (FOUCAULT, 1967)
De posse desta imagem onírica, dirigimos o olhar para este lugar ilimitado a fim de ver, à primeira vista, as novas paixões do dono desta casa que nos recepciona. Desde a porta somos surpreendidos por uma coleção de imagens de São Sebastião que nos abençoam a chegada nesta nave artística. A cor carmin, que dá vida as paredes, aconchegando-nos, também mapeia todas as obras de arte e objetos que fazem parte da impressionante instalação. Uma vez dentro deste criativo lar é impossível resistir a sua fruição plena. Tudo nos afeiçoa e excita, percorremos os ambientes como desbravássemos novos mares. Transborda em nós um sentimento muito intenso, uma curiosidade em desvendar, entre muitas preciosidades ali guardadas, a história daquele que edifica sua morada com tamanha dedicação à arte.
Centenas de ex-votos e imagens de santos reinam, respectivamente, como divindades profanas e sagradas neste oráculo poético. Ao lado de ícones da cultura popular, resplandecem pinturas, esculturas, desenhos, gravuras e fotografias que comungam em grande parte com a estética do sincretismo religioso que permeia a arte brasileira. Neste cosmos único e encantador, flutuam diversas miniaturas de embarcações construídas por Trevi, cujo atracadouro a ser conquistado pelo artista e anfitrião, que tem profundo apreço em bem receber, talvez seja o nosso próprio coração.
Neste eterno movimento migrante, fazer da própria casa um porto para o encontro de outros olhares é uma atitude tão sensível quanto corajosa. Não vamos descrever com mais minúcia tal atmosfera, porque para senti-la é preciso respirá-la. Todavia, entendemos que tudo ali é a obra de uma vida, que muda de lugar, mas não em sua essência. Assim o artista, embalado pela fortuna de metáforas e utopias que o acompanham, segue como incansável navegante que tem por farol a nossa presença, sempre acolhida com tamanha satisfação.
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Carlos Trevi – Territórios da memória
Raul Córdula [Curador]
Poucas vezes se pode ter a oportunidade de assistir ao nascimento de um artista, especialmente se ele for um homem público que ao longo da vida esteve à frente como curador e gestor de importantes instituições culturais. Este privilégio eu tive ao ser surpreendido com a arte de Carlos Trevi, e por ter sido convidado por ele para escrever o texto que ilustra sua primeira exposição, o que muito me honrou. Trevi cria objetos, como caixas onde expõe fragmentos de memórias, usando objetos que guardou por toda sua rica existência, e também esculturas, parte novíssima de sua produção, em que utiliza objetos compostos por assemblage. Mas suas caixas ou suas composições escultóricas não são apenas mostruários; elas têm histórias e contam histórias. Em generosa carta ele me narrou as origens de seu trabalho, com as caixas especialmente:
“Comecei a montar essas caixas quando recebi um hóspede, já aqui em Olinda, o artista mineiro Léo Piló. Silencioso e disciplinado, Léo passava o dia todo montando caixas que ele chama de intenção, utilizando materiais descartados e reciclando pequenos universos encapsulados e protegidos por vidro. Essas caixas de intenções são uma influência das Minas Gerais do século XVIII, quando freis franciscanos e também alguns mendigos usavam-nas penduradas no pescoço em intenção ao santo de sua devoção e assim recebiam esmolas por futuras intenções atendidas. Fiquei encantado e pedi que me ensinasse como fazer. Acabou virando um pequeno vício e volta e meia estou às voltas com uma caixinha.” Não são apenas “caixinhas” o que sai de sua cabeça, passa por seu coração e chega às suas mãos, onde se transforma em espaços repositórios de crônicas familiares ou autobiografia sensível.”
Trevi dá nome aos seus objetos, nomes que além de transmitirem sua poética, facilitam a compreensãoda obra. Gosto disso, pois podemos ter um roteiro da exposição. Começamos com as duasprimeiras caixas: Família I e II reúnem diversos objetos, fotografias antigas, e servem de mapa ouíndice de toda exposição. Mas é em Fonte das lembranças que se encontra o ajuntamento de pequenascoisas, memórias de família, notas de dinheiro antigo, cartões do avô para a avó e um comoventebilhete que sua tia Eloína Ribas, sobrinha do sanitarista Emílio Ribas, deu-lhe quando ele fez um ano, com a seguinte quadrinha:
Carlos Eugênio lindinho,
Com sua carinha louçã,
Receba esta lembrancinha
De sua babá alemã.
O trabalho seguinte é Escolas, onde se vê uma xícara que lhe foi presenteada por Silvana Gontijo, sobrinha do escritor e memorialista Pedro Nava, autor de “Baú de Ossos”, e também um binóculo presente da tia Emília. Neste ponto seu trabalho se contamina com objetos-fetiches de sua história, como em Viagem, onde se encontram um dicionário de Chinês, um bibelô antigo com figura de mulher e um filme do aniversário de 15 anos de sua irmã, nunca revelado.
A sexta e a sétima caixas homenageiam duas mulheres que têm ou tiveram importância em sua vida. A primeira no sentido abstrato: a Rainha Elizabeth; a segunda no físico, nos ensinamentos da vida: a crítica de arte Radhá Abramo, já falecida. Para homenagear a Rainha Trevi utilizou imagens guardadas, como dois retratos dela, o primeiro na juventude, o outro na velhice, em que ela está com os olhos fechados. Entre cristais diversos, dois soldados da guarda da Rainha, um em pé e outro deitado.
A oitava chama-se O que resta: fotografia de uma mulher em cujo rosto está encravada uma imitação de cristal e ao redor, em toda caixa, pequenos cristais e pedras semipreciosas. Do lado de fora, no que seria a moldura, uma pequena engrenagem de caixinha de música.
A próxima é a lembrança de sua avó Yayá, nascida em 1884, através de uma fotografia de 1888,quando tinha apenas 4 anos. Atrás desta foto uma feliz premonição: Photographia Alemã – AlbertonHenschel & Co. Photographos da Casa Imperial – Pernambuco – 52. Rua do Br. da Victoria 52. Embaixo,num panorama de São Paulo.
A décima obra é Fé: numa redoma, uma garrafa do guaraná Jesus, cujo líquido é cor de rosa, fabricadoe engarrafado no Maranhão. Em seguida está Pequeno Museu holandês, a citação do autor, que aos poucos se naturaliza pernambucano, às batalhas com a Cia. das Índias Ocidentais, representada pelo Conde Maurício de Nassau. Emoldurando três imagens de Nassau vemos pedaços de cachimbos holandeses do século XVII, balas de arcabuz, cacos de louça holandesa, referências às naus, à flora e à fauna e uma fita desenhada ao modo de Post, com o nome Pernambuco tremulando.
A décima segunda caixa é um lindíssimo objeto que nos leva a pensar num relicário. Trata-se de O guarda roupas do menino, um pequeno móvel com três gavetas contendo as mudas de roupa de uma imagem de Jesus menino. Vê-se que as roupinhas mais antigas são mais elaboradas que as posteriores, contêm mais rendas, bordados e costuras.
Tábua da Salvação I vem em seguida, com pequenas imagens de Nossa Senhora e do Espírito Santo rodeadas por “santinhos” colados na madeira. Mais uma vez Trevi afirma sua religiosidade barroca, transversa, que caracteriza, não obstante seu trânsito por vários lugares, que sua emoção circula entre Minas e Pernambuco. Então, em Tábua da Salvação II ele confessa sua devoção pela Virgem Maria com a imagem de uma santa encrustada numa tábua encimada por um Espírito Santo. Toda a composição está coberta com pequenos pedaços de fita colorida. Ele usou mais de 100 metros de fita neste pequeno objeto.
A décima quinta é Olinda, que tem como fundo uma fotografia feita em alguma praia da Argentinamostrando pessoas, numa alusão à praia de uma Olinda antiga. As pessoas estão vestidas com estilo e estão tomando vinho, tendo ao longe um Farol. Este símbolo da cidade aparece também no primeiro plano na miniatura de um farol de latão. Uma sereia passa como que voando, o que lembra a arte de José Barbosa. São Sebastião, outro santo devotado por ele, está esgueirado no canto esquerdoe tem a cabeça de um caco de bibelô beijando seu rosto, uma alusão do professor apaixonado pelo aluno em “Morte em Veneza”, de Visconti.
A partir daqui se inicia o conjunto de esculturas, ou melhor, de esculturas fora da parede. Sabe-se que a escultura foi a categoria artística que mais se adaptou ao mundo atual, superando a ideia de tridimensionalidade. Portanto, é legítimo chamarmos também as caixas de esculturas, esculturas de parede, mesmo que elas se insiram na “crônica” do passado.
Começamos este conjunto de assemblages por Bicho, que tem como tema um lagarto de cerâmica do Parque Güel dominando a composição. Então passamos para Fé, Esperança e Caridade, objeto formado por três pequenos oratórios de viagem pintados de branco (Fides), verde (Spes) e vermelho (Caritas). O conjunto é arrematado por duas asas de madeira pintada e um ex-voto de um braço com a mão aberta. Os oratórios estão fechados, irremediavelmente fechados, colados uns aos outros. Trevi diz que só quem pode abrir os oratórios é o coração. Opondo-se à fé na divindade, ele compôs um Diabo com ex-votos: uma grande cabeça de onde saem duas pernas para compor os chifres e uma mão dando o dedo, que sai da boca.
Passamos para as esculturas complementares, Homem, Mulher e Menino, onde o homem é uma cabeça e uma mão de ex-votos, e uma peça de madeira e ferro que integrava os instrumentos de sapataria nos anos 30, colocada à guisa de pênis. A mulher é composta por dois ex-votos, uma cabeça feminina com um único seio. Trevi criou então o menino, ex-voto de cabeça infantil e dois moldes antigos de sapato entalhados em madeira. Chamo à atenção para estes antigos moldes e instrumentos da confecção de sapatos; com eles Trevi compôs parte das esculturas, como Impulso.
Eu te conheço como a palma da minha mão é uma escultura que lembra uma esfinge, pelo mistério contido em sua simplicidade. É composta pelos ex-votos de uma mão que segura uma cabeça. Quebra cabeças é um jogo formado por seis cabeças de ex-votos e discos de madeira encaixados numa caixa. O tratamento das cabeças com os cortes feitos para caberem no jogo formam obras isoladas. Temos agora outro conjunto, a começar por Brasil, que tem a base pintada com listras verdes e amarelas onde pousam cabeças de ex-votos de um índio, um branco, um negro e um asiático.
Em seguida vem Mercado Tapuia, em que o artista retoma Eckhout, referindo-se à sua famosa pintura da índia Tapuia que leva mantimentos para a tribo; nela se vê, entre outras coisas, uma mão humana. Essa escultura tem por base uma antiga peça que se usava para colocar pesos de balança. Em vez de pesos, nela se encontram ex-votos de várias partes do corpo humano.
Deixando as citações históricas e retomando a religiosidade, temos O Batismo, uma pequena escultura de São Sebastião em pé sobre a metade de um prato de cristal, incrustado numa base de madeira pintada de azul e cercado de pérolas, búzios e outras coisas referentes à água, inclusive um cálice. Aos pés da Santa arremata todo o conjunto: uma caixa contendo pequena escultura de uma santa que está semicoberta por uma tábua de jacarandá com buracos que mostram partes dela. O mistério está na tábua que vela a imagem, mas o véu é madeira, lembrando que o objetivo é difícil de alcançar.
Eis aí o novo artista que já nasceu possuidor de vasta cultura visual. Eis aí sua primeira mostra paranossa fruição. Cabe a nós louvá-lo, aplaudi-lo.