CONTEMPLANDO UM OLHAR

Alexandre Santos, abril de 2012. [Texto escrito para a exposição Meu ponto de vista – Série banheiros, do edital para o I Prêmio IEAVI – Incentivo à produção de Artes Visuais, exibida de maio a junho de 2012 na Casa de Cultura Mario Quintana, Porto Alegre/RS.]

Se a fotografia propõe antes de tudo um golpe que recorta o espaço e o tempo pela escolha do operador, o trabalho de Mariane Rotter parece acentuar ainda mais esta condição da imagem fotográfica, ao nos conduzir à contemplação radical de sua própria experiência com o mundo. A série Banheiros anuncia, em sua sutileza, que estamos vendo um olhar, que fruímos de uma imagem oriunda da percepção retiniana e sua leitura peculiar do espaço circundante. Trata-se, em última instância, de um exercício de empréstimo de seu olhar, no qual a artista, por outro lado, vê a si mesma, ainda que através do silêncio, da ausência e da opção por uma espessura densa de construção da imagem. Estes aspectos nos remetem tanto às especificidades da fotografia, quanto a uma provocação sobre a imagem mecânica como operação de autoria e afirmação subjetiva. Os banheiros aqui representados são como autorretratos que tensionam a obviedade do enquadramento com o recurso ao rosto ausente, abrindo-se com esta atitude para a potencialidade do pensamento visual. Ao mesmo tempo, e de maneira ambígua, estas imagens podem forjar a adesão do espectador, alicerçada em sua onipresença refletida no vidro que as envolve, situação que também acolhe o espaço do entorno, repetindo a atitude original da tomada fotográfica, agora como experiência fenomenológica mais ampla. Neste sentido, o trabalho micronarrativo de Rotter torna-se um prenúncio à desordem, ao sobrepor camadas do discurso visual que desafiam as relações entre o íntimo e o coletivo, nos capacitando à perda de nossas referências mais seguras.

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MEU PONTO DE VISTA, DE MARIANE ROTTER

Thiane Nunes

Enxergar e perceber serão sinônimos? Sinto que costumeiramente não vejo, preferindo perceber – eu faço essa escolha. Eu faço a informação atender às minhas expectativas e procuro preencher as possíveis lacunas. Frequentemente crio imagens, mesmo na sua ausência. A abertura ao viés e à interpretação é ainda maior quando estou fazendo algo tão abstrato quanto refletir sobre um trabalho em arte, um que especialmente me toca.

É sobre a produção Meu Ponto de Vista que pretendo refletir. Foi a partir de 2001 que a artista Mariane Rotter (1975) iniciou uma série de imagens fotográficas onde procura seu próprio reflexo, além de outras perspectivas de como percebe o microcosmo do seu cotidiano, concentrando-se naquilo que captura na altura de seu olhar. A fotografia sem título conhecida como Banheiro Rosa inaugura uma sequência, onde a artista busca seu reflexo em espelhos de banheiros aleatórios, em bares, casas de amigos, hotéis, locais públicos e privados. Seu olhar frontal, na altura de seus olhos, esbarra em uma parede de azulejos cor de rosa. A artista nos apresenta o seu ponto de vista, o que ela percebe ao clicar, na altura de sua estatura de um metro e trinta. Nós não a encontramos nessa foto. O espelho está acima de sua visão, e ela, por sua vez, não encontra seu reflexo. A busca de si em variados espelhos e a descoberta do ponto de vista da artista acaba por reconfigurar nosso olhar sobre o status do autobiográfico e do documental.

Meu Ponto de Vista não é apenas o encontro entre uma mulher artista engajada na autorrepresentação e na busca de si. A ausência do próprio reflexo, ou sua extraordinária presença em cortes inesperados ou pequenos pedaços refletidos em espelhos, subverte a semelhança de si mesma e desafia as convenções ocidentais da arte em relação ao gênero do autorretrato.

Outra tradição da arte ocidental é subvertida pela fotografia de Mariane: a histórica iconografia da “vaidade”, costumeiramente representada pela imagem de uma mulher se olhando atentamente em um espelho, tanto como um incentivo para o espectador a se juntar a essa visão de prazer quanto como um alerta sobre os pecados da carne. Esse dispositivo foi usado inúmeras vezes na arte para encontrar uma justificativa plausível para exibir a forma feminina nua, muitas vezes inscrevendo o corpo da mulher em um conjunto complexo de leituras sobre a natureza inerente dos sexos e seus papéis socialmente adequados. Mais significativamente, esses espelhos indicavam que a mulher é um objeto de consumo especular e que ela conspira com isso, legitimando a visão voyeurista do seu próprio corpo. Assim, seria da natureza da mulher ser passiva e vista, enquanto o homem olha, ativamente. Essa ideia está embutida em uma infinidade de representações artísticas, especialmente naquelas que incorporam os tropos da mulher e do espelho.

Os autorretratos de Mariane sugerem leituras opostas, negando seu reflexo. Espelhos colocam alguns sujeitos refletidos no centro dos discursos e marginalizam outros. O que permanece fora da moldura do espelho fica fora dos limites, eclipsado, indecifrável. Perceber os detalhes que a visão alcança, fora do espelho, é mudar a perspectiva e, assim, considerar diferentes conhecimentos.

A arte ocidental tem sido estritamente controladora em relação ao enquadramento de quem deveria ser refletido. Apenas um número muito limitado de sujeitos foi considerado apropriado e visível, e a história é repleta de invisibilidades. A busca da artista por seu próprio reflexo e confrontação por não se ver refletida desafia a propriedade do que está dentro da estrutura e do que interessa a si própria. Não está a disposição para exibição e deleite. É o corpo particular de uma mulher que confronta os limites da representação em diversos sentidos. Meu Ponto de Vista altera o relacionamento entre visualizador e visualizado, interrompendo estruturas binárias simples e sugerindo novas leituras, atuando também como uma metáfora para enquadrar imagens.

O corpo feminino, exibido em pinturas, esculturas e fotografias durante séculos, quase sempre teve pouco a ver com corpos reais e particulares, costumando ser alegoria “universal” da criatividade e do desejo masculino. Mulheres artistas ao longo dos anos desafiaram as convenções de gênero, os conceitos do eu e negociaram novos espaços em que produziram seus autorretratos.  O trabalho de Mariane me toca como um desses momentos. Afirma um modelo diferente de ver, através do simples mecanismo de desafiar o espelho. É justo dizer que, ainda que a artista não forneça uma inequívoca filiação à arte feminista, sua produção se envolve com toda uma série de políticas afirmativas e corporais. O que isso me indica, como historiadora em arte, é que a noção de um documento não pode ser contida, – ao contrário, está sujeita a um escrutínio perpétuo e a mudanças de significado constantes e paralelas.

Nesta ordem de ideias, algumas práticas contribuem para a construção de novas subjetividades, aos níveis individual e coletivo. Griselda Pollock defende que a arte “deve criar um tipo de espectador completamente novo como parte integrante das suas estratégias figurativas” (POLLOCK, 2001). A ligação entre o poder e a construção do significado tem um papel crucial na definição da hierarquia simbólica nas relações de dominação e subordinação, à volta das quais a cultura ocidental se organizou, o que tem sido reflexão de muitas pensadoras. Estas análises sobre a forma como o poder é exercido − não através de uma repressão aberta, mas através de investimentos em discursos culturais, e as formas de conhecimento que eles produzem – têm levantado muitas questões acerca do funcionamento da cultura visual como uma prática definida e reguladora sobre o lugar das mulheres na história da arte (CHADWICK, 1996).

A teoria pós-estruturalista investiga a construção do eu e nega mitos que tentam sugerir que o eu é completamente unificado e natural. Permite a interação entre o sujeito e uma série de forças sociais e busca modelos de subjetividade que possibilitem contradição e tensão nos indivíduos. Em termos de explorar as autorrepresentações das mulheres, traz insights cruciais para minha análise. Um desses insights é a sofisticada interação entre representação e identidade da artista, entre a imagem e a criadora da imagem, entre a representação de si e ela própria. Além disso, o autorretrato está implicado no complexo entrelaçamento dos papéis de sujeito e objeto. Para as mulheres, essa interação é particularmente crítica. Mulheres são vistas como objeto de arte há séculos, enquanto permaneceram marginalizadas como criadoras. Atuar em ambos os papéis, simultaneamente, é encenar intervenções cruciais.

Venho trabalhando na ideia de que autoexpressão não é uma reflexão inocente do que as artistas percebem quando se buscam no espelho. Faz parte da linguagem profunda que a artista utiliza para estabelecer um registro, desde o simples ‘é assim que eu me pareço’ até o mais complexo ‘é nisso que eu acredito’. Ofereço aqui uma oportunidade para considerarmos como as mulheres artistas utilizam suas próprias autorrepresentações para explorar, expandir e reclinar o ato de olhar e construir significados dentro da produção cultural. Ao fazê-lo, tornam visíveis subjetividades complexas, multifacetadas, fragmentadas e diversas.

Mulheres artistas produzem seu trabalho dentro de um sistema que as definiu como diferentes; agora não podemos horizontalizar essas diferenças, sem deturpá-las ou minimizá-las seriamente. É neste ponto que Donna Haraway usa a visão como a metáfora com a qual podemos construir um conhecimento corporificado, mas não o modelo de visão que assume que pode haver um olho objetivo e sem corpo – e sem gênero -, que inocentemente coleta e processa informações sobre o mundo (HOLLANDA, 2019). Em vez disso, devemos reconhecer as posições a partir do que vemos, a personificação particular de nossos próprios olhos, e depois sermos críticos da nossa visão e responsáveis por ela.

O autobiográfico se redesenha como um local de discursos e definições sociais conflitantes e num valioso ponto de partida para o exame dos papéis construídos e mediados das mulheres, através de experiências pessoais. Questões relativas à representação das mulheres e ao papel do olhar foram colocadas em primeiro plano há cerca de cinquenta anos. Em 1978, quando a artista Angela Kelly utilizou-se da famosa frase “o pessoal é político”¹ em um artigo na Revista Camerawork (1972-87), ela estava precisamente falando sobre a ideia consciente do autorretrato feminino, aquele que aspira um olhar singular, mas acaba por dar voz a outras mulheres. Essa premissa faz parte de uma importante diretriz da nossa compreensão atual da prática contemporânea e feminista na arte, o que me levou a refletir sobre essa série de fotografias. Elas são criadas em frente a espelhos diversos, algumas em banheiros, um local de uso privado. Posteriormente são expostas em um novo espaço, de caráter narcisista e extremamente público, a rede social online Instagram – uma ode a cultura do selfie moderno. Esse caminho traçado, do particular ao público, do privado ao partilhado, acaba por despertar, inevitavelmente, meu interesse nas questões de representatividade, de identidade e lugar.

Devo reconhecer, no entanto, que as mulheres artistas ainda se dividem em diferentes opiniões e visões sobre a prática feminista em arte e, nessa medida, também operam em uma variedade de princípios e expressões nos modos como trabalham os símbolos culturais e como os propõem. Ainda assim, somos forçadas a reconsiderar as pessoas que passamos a enxergar nos autorretratos, ou a questionar a sua ausência, redefinindo nossos papéis como sujeitos falantes – e visíveis por isso – dentro de uma cultura masculina. Não por acaso me surge a mente as considerações de Hélène Cixous, quando celebra o transgredir da linguagem sugerindo ”romper com o estabelecido e projetar o ainda improjetável”.

Ao olhar para a produção de Mariane me pareceu possível ensaiar alguns termos não apenas do poder dessas imagens, mas também nos termos de comparação com o gênero do autorretrato contemporâneo, que segue hoje renegociando os códigos de feminilidade e representação do corpo feminino. Como eu estou? Que imagem eu apresento ao mundo? Como me encontro refletida nas imagens da cultura visual? Ou como não me encontro, e não sou representada? Eu mesma provavelmente busquei espelhamento oferecido pela sociedade, pela cultura, e outras vezes os rebati e me rebelei. Mas aprendi que, como mulher, sou definida como ‘outro’ e forçosamente deveria executar os papéis atribuídos ao meu gênero de nascimento. Assim as identidades são forjadas, num fluxo contínuo, sujeitas ao jogo da história, patriarcal, ocidental, embranquecido e heteronormativo.

Este ensaio trata de uma artista explorando, percebendo, conhecendo e representando a si mesma nas estruturas sociais existentes. A arte de Mariane Rotter se localiza num espaço entre arte e vida, desafiando o espelhamento plano e costumeiro no qual o eu é estático e conhecível, precedendo a teoria e dando vida a ela. Sua escolha em nos ofertar seu olhar diferenciado fomenta consequências provocantes e desafiadoras entre nós. Não é minha intenção sugerir um olhar acadêmico objetivo, examinando e explicando a obra da artista. Ao invés disso, proponho um diálogo com essas fotografias e nosso próprio olhar autobiográfico. Uma espécie de intervenção nas estruturas canônicas do olhar, comprometida com os desafios com os quais a prática artística das mulheres nos força a nos envolver. São obras como essa que nos fortalecem a reescrever os antigos mitos e nos fazem pensar sobre as políticas de representação, indicando maneiras pelas quais o trabalho das mulheres artistas pode ser descoberto e recontextualizado.

1 Reconhecido como o slogan definitivo do feminismo da Segunda Onda, o slogan “o pessoal é político” tem suas origens em um artigo com o mesmo título, de autoria de Carol Hanisch. Foi publicado em 1970 como parte de uma coleção de ensaios editados por Shulamith Firestone e Anne Koedt.

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Referências

ANZALDÚA, Gloria; KEATING, Analouise. This bridge we call home: Radical Visions for transformation. New York: Routledge, 2002.

CHADWICK, Whitney. Women, Art, and Society. London: Thames and Hudson, 1996.

CIXOUS, Hélène. The Laugh of the Medusa, in Hilary Robinson (org.), Feminism-Art‑Theory: An Anthology 1968‑2000. Oxford: Blackwell, 2006.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista: Conceitos Fundamentais. São Paulo: Bazar do Tempo, 2019.

HOOK, bell. Art on My Mind. Visual Politics. New York: The New Press, 1995.

POLLOCK, Griselda. Vision, Voice and Power: Feminist Art Histories and Marxism, in Vision and Difference: Feminity, Feminism and the Histories of Art. London: Routledge, 1982.

POLLOCK, Griselda. Modernity and the Spaces of Femininity, in Francis Frascino; Jonathan Harris (orgs.), Art in Modern Culture: An Anthology of Critical Texts. London: Phaidon, 2001.

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O CORPO DA ARTISTA COMO PARÂMETRO DA OBRA:
UMA ANÁLISE SOBRE A SÉRIE MEU PONTO DE VISTA,
DE MARIANE ROTTER

Viviane Gil Araújo

Introdução

A insuficiência das categorias da arte em dar conta dos diferentes trabalhos realizados nos últimos sessenta anos incentivou o surgimento de novas práticas que não estão de acordo com os conhecidos modelos da tradição. Nessas novas práticas é possível verificar que se estabeleceu não apenas uma mudança de foco, do objeto artístico para o sujeito artista, permitindo que criadores contemporâneos transformassem suas vivências e experiências em uma questão de arte, como também o uso da fotografia se tornou usual para o registro do cotidiano desses. Apresenta-se como exemplar desse original enfoque, a obra da artista brasileira Mariane Rotter (1975) que, ao colocar o seu corpo como parâmetro absoluto para a realização da obra, procura refletir sobre sua condição e suas experiências em espaços públicos ou privados, mas de uso coletivo.

Mariane Rotter é professora na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, bacharel em Artes Plásticas com ênfase em fotografia (2002), licenciada em Educação Artística (2005) e mestre em Artes Visuais (2008) pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A obra “Meu ponto de vista”, 2001 iniciou durante a sua graduação em Artes, teve continuidade em sua pesquisa de mestrado e segue até os dias de hoje. Nas Figura 1, Figura 2 e Figura 3, é possível verificar cenas comuns do seu cotidiano. Distinto é o enquadramento que a artista faz, sempre definido a partir da linha do horizonte dos seus olhos, a um metro e trinta da altura do chão.

Nas fotografias apresentadas é possível verificar que a artista registra, no espaço íntimo de diferentes banheiros, imagens que partem do seu olhar, que se situa em paralelo ao chão. Ela está parada em frente aos simétricos arranjos de espelho, torneira e pia, construídos e colocados a partir de convenções da arquitura residencial. Entretanto constatamos uma forçosa ausência da criadora quando o reflexo do seu rosto não aparece no espelho.

Se ao longo da história da arte, uma série de artistas fixou sua própria imagem como marca da autorreflexão, o que conferiu às obras um caráter autobiográfico, nas imagens fotográficas de Rotter, não é possível ver a artista ainda que ela realize o seu autoretrato possível, que testemunha seu modo de ser e estar no mundo.

É próprio da produção de arte contemporânea, na qual a obra de Mariane Rotter se insere apresentar-se de maneira complexa, não só por que estabelece uma nova forma de fazer, mas também porque necessita uma nova forma de olhar. Ela poderá trazer a público, obras que falam do corpo raro, reservado ou interdito e que foram elaborados por artista artistas que transformam suas vivências, partindo do seu corpo, nas dimensões físico-psíquicas, como parâmetro absoluto de sua produção. Paradigmática é Mariane Rotter, que transforma o seu estar no mundo — como artista e mulher que está fora dos padrões de estatura em vigor — em uma questão de arte. Rosana Paulino (n.1967), artista paulista que desenvolve questões similares em seu trabalho elabora sobre a escolha da temática para os trabalhos:

O artista deve sempre trabalhar com as coisas que o tocam profundamente. Se lhe toca o azul, trabalhe, pois, com o azul. Se lhe tocam os problemas relacionados com a sua condição no mundo, trabalhe então com esses problemas. […]. Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou de um comportamento que traz muito preconceito, velado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão. Dentro de esse pensar faz parte do meu fazer artístico me apropriar de objetos do cotidiano […]. Utilizar-me de objetos de domínio quase exclusivo das mulheres […]. (Paulino, 1997)

Na obra Meu ponto de vista, 2001, de Mariane Rotter, a ponto está na abordagem que a criadora faz dos padrões impostos e que determinam, de maneira arbitrária, até a construção e organização dos espaços mais íntimos. Enquanto ela elabora um documento visual das intransigências do seu tempo, chama a atenção para as interdições que lhe são impostas dia após dia.

Quanto à poética de Rotter, essa ainda inclui a organização de um arquivo digital, que permite que ela repense não apenas as dimensões das fotografias, como o formato das suas apresentações nos diferenciados espaços expositivos. Assim como pode ser observado na Figura 4, na vista parcial da então exposição Meu ponto de vista: série banheiros, 2012, que apresenta as fotografias em dimensões ampliadas.

É igualmente característica da poética dessa artista, retornar às fotografias obtidas no início de sua trajetória, e não apenas por cautela em relação ao mercad artístico que impõe limites às reproduções, ela segue na obtenção de novos autorretratos possíveis, como o obtido para a Série Espelhos, 2012, Figura 5.

A imagem apresentada na Figura 5, de certa forma quebra a verticalidade imposta pelos arranjos sanitátios da série anterior e expõe um ambiente caótico, mas de referências claramente femininas. O pôster emoldurado na matade inferior da foto mostra uma figura claramente fetichista, um sapato vermelho que abaixo tem caligrafado a palavra “Stiletto”. Apenas um quadro decorativo de conceito duvidoso, não fosse a sua base de espelho permitir que pela primeira se visse o corpo da artista refletido, e nele ela se reconhece.

A produção de arte contemporânea, por sua polissemia, poderá possibilitar que alguns artistas desenvolvam, através de suas obras, suas Mitologias Pessoais (Maison Rouge, 2004) e percebam o cotidiano à sua volta como umapotência latente de diferentes significados a serem interpretados e retransmitidos. A expressão Mitologias aplicada às obras de arte contemporâneas se apresenta no contexto de curadorias realizadas entre os anos sessenta e setenta:

A expressão “mitologia” aplicada às obras de arte contemporânea foi usada pela primeira vez em 1964, por ocasião de uma exposição do Museu de Arte Contemporânea da Cidade de Paris, consagrada a 35 pinturas francesas reunidas pelo crítico Gérald Gassiot-Talabot, sob o título “Mitologias Cotidianas”. Em Kassel, em 1972, um outro crítico, Harald Szeemann, criou uma seção da Documenta V, grande fórum internacional de arte contemporânea, com o nome “Mitologias Individuais” referindo-se ao vocábulo que ele havia empregado em 1963 para qualificar as esculturas de Étienne Martin “As Mitologias Individuais tentaram dar a Documenta V a dimensão de um espaço metafísico, onde cada um expôs signos e sinais mostrando seu mundo pessoal”, explicava o curador. (Maison Rouge, 2004:17-21)

O trabalho da artista Mariane Rotter, conforme analisamos surge da sua interação com o mundo e, por meio dele, ela entrega depoimentos que contribuem não somente para a apreensão de suas obras, como também alertam para a dimensão política que pode ter uma obra de arte. Os dilemas ali expressos nos fazem refletir sobre questões peculiares à condição humana que se revelam na dimensão invisível da obra, tão cara tanto ao artista como ao espectador.

Referências

Maison Rouge, Isabelle de (2004). Mythologies personnelles: l’ art contemporain et l’ intime. Paris: Éditions Scala. Paulino, Rosana (1997). Panorama da Arte Atual Brasileira 97. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo. Rotter, Mariane (2008). Meu ponto de vista: O cotidiano e os lugares da imagem. Dissertação de Mestrado em Artes Visuais, do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.