PINTURA – TEMPO E MATÉRIA

Ana Albani de Carvalho [Crítica de arte, professora e pesquisadora junto ao Instituto de Artes da UFRGS]

Ao lançar um olhar panorâmico sobre os eventos e instituições que obtêm maior alcance midiático no circuito da arte contemporânea, observamos que a cena apresenta-se, em muitos casos, marcada por uma produção que se configura através de projetos, desmaterializada ou veiculada com os recursos tecnológicos para exibição de imagens – fixa ou em movimento – e em produções que discutem o papel da autoria individualizada, através de práticas colaborativas ou da interatividade. Ao diversificar suas inserções sociais e ao trabalhar por projetos com ênfase em conceitos ou temas, o artista contemporâneo também ampliou seu leque de opções, em termos de técnicas, procedimentos, linguagens. Dito de forma mais específica, na atualidade, um artista escolhe o meio técnico e a linguagem – por exemplo, fotografia, vídeo, instalação ou desenho, por que não, pintura – na medida em que este meio, linguagem ou procedimento é por ele considerado como o “mais adequado” para expressar ou veicular sua proposta de trabalho, via de regra, alicerçada em uma estrutura teórica, conceitual ou, no mínimo, projetual.

Neste cenário, apresentar-se como pintor e, assim, como alguém que faz uso de tela, pincéis e tinta, parece exigir do artista uma explicação sobre suas motivações para o emprego de uma linguagem e de uma técnica que exigem, para dizer o mínimo, um razoável investimento de tempo para o domínio do ofício. Além da coragem para assumir o embate corporal com a tela em branco, ao pintor é exigido que reconheça uma história e uma herança, tanto de pesquisas formais, quanto de repertório iconográfico, que se impõem ao debate crítico contemporâneo como um umbral difícil de ultrapassar.

De um ponto de vista histórico e tomando por referência a arte brasileira em seu processo de constituição do campo artístico alicerçado em concepções estéticas modernas, por sua vez, observaremos o protagonismo de artistas que investiram na gravura, no desenho, na escultura. Se voltarmos a atenção para a produção de vanguarda realizada nos anos 1960 e 1970, por seu turno, veremos a recorrência no emprego da fotografia e de outros meios técnicos para produção de imagens.

Este breve preâmbulo aponta, de forma resumida, em coerência com os limites do presente texto, para a complexa presença da pintura na cena contemporânea. Se as formas e os temas tradicionais não estão mais a mão, “[…] escolher o embate direto com o mundo (pintar a paisagem, e não repintar a tradição da paisagem) significa verificar, no âmago das técnicas pictóricas tradicionais, se o mundo ainda está lá para ser pintado”.[1]  Não. O mundo não está mais à disposição. Nada está à disposição para ser revelado à visão, à luz da verdade. Na adversidade, porém, a pintura persiste.

Com mais de 25 anos de trajetória nas artes visuais, Helena d´Ávila ancora parte significativa de sua produção no terreno da pintura. Desde os trabalhos com camadas de gesso realizados nos anos 1990, às pinturas de grandes telas dos anos 2000, alguns pontos permitem observar a coerência e o adensamento de sua pesquisa pictórica.

A pintura de Helena d´Ávila articula-se a uma linha que ganha corpo no decorrer dos anos 1980 entre os jovens artistas do período e que permanece ao longo dos 1990 e mesmo após, na qual predomina a marca do gesto produzida com a mancha de tinta, resultante de um embate corporal com a superfície da tela. Uma imagem fotográfica pode funcionar como elemento disparador do processo pictórico. Na obra da artista, a cena fotografada é geralmente corriqueira, paisagem ou figura, com algum significado para ela. Sua escolha como deflagrador da pintura se dá, porém, mais por seu potencial de composição do que por aspectos temáticos ou iconográficos.

Este procedimento que tem uma imagem como elemento disparador pode ser observado nas pinturas realizadas entre 2012 e 2015. A partir de uma marcação inicial na tela, camadas se sucedem, conduzindo – do ponto de vista do espectador – a um jogo de revelação/encobrimento.

Como argumenta Jacques Aumont, “[…] narrativa ou menos narrativa, é toda pintura que se choca com esse impossível: figurar o tempo”.[2] As camadas de tinta, aplicadas sucessivamente por Helena d´Ávila, em seu procedimento de encobrir/descobrir a superfície da tela e suas marcações iniciais, produzem no espectador uma perturbação do olhar. Perturbação causada pela percepção simultânea dessas camadas de tinta enquanto camadas de tempo. A ambiguidade decorre do conhecimento objetivo de que uma pintura é um objeto espacial e não temporalizado. A percepção, porém, oscila no intervalo entre a mancha e a figura interrompida. Mais do que a possibilidade de operar com alguma definição de tempo ou memória, vivenciamos uma sensação de tempo e memória, à medida que nos concentramos nos planos de cor – azuis, vermelhos – ou nas linhas gestuais em preto que delimitam zonas no plano da tela, sem necessariamente afirmar uma determinada ilusão de profundidade.

O olhar percorre a superfície da tela, afunda e, mais uma vez, emerge, flutua. Não se trata de uma imagem que possa ser “lida” apenas de forma intelectualizada, na medida em que a pintura foi produzida tendo como guia a sensação. E sendo essa sua diretriz, essa parece ser a modalidade preferencial para sua recepção. Sensação de cor e luz. Sensação da passagem do tempo. Nada disso, porém, deve elidir a vivência da materialidade da tinta em alguns pontos diluída, em outros, mais densa ou da expressividade gerada pelo gesto de marcar a tela. Estar diante de uma pintura deve ser vivência assumida pelo espectador em sua dimensão plena. O aqui e o agora, como um umbral que não devemos ter pressa em ultrapassar.

[1] MAMMÍ, Lorenzo. O que resta: Arte e Crítica de Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Pág. 189.

[2] AUMONT, Jacques. O Olho Interminável [cinema e pintura].  São Paulo: Cosac & Naify, 2004. Pág. 81