tal semente na terra

“Eu olho para o meu corpo e vejo paisagem. Eu olho para a paisagem e vejo meu corpo. Me encanta pensar que tudo está conectado. Em cada pintura, procuro sentir e expressar profundamente essa unidade que existe na natureza e que eu, a meu modo, acesso.”

A exposição Quando o corpo toca a terra é fruto de urgências – de pintar, de devanear, de viver. Daí, talvez, o ardor e a rapidez com que a artista executou grande parte das obras. Para o vigoroso conjunto de 20 pinturas que dá título à mostra, foram apenas três meses de trabalho.

Dados quantitativos costumam passar ao largo do universo poético, mas esses reivindicam ênfase: 20 pinturas em três meses. Na média, uma obra concluída a cada três dias. Os números poderiam parar por aqui, mas seguem impressionando: cada tela tem 1,80 m de altura, 80 cm de largura, perfazendo 16 metros de comprimento, em uma grande panorâmica.

“Iniciei no dia 5 de maio e terminei em 5 de agosto. Entrava no ateliê cedinho e só parava quando o corpo começava a doer, ou quando o cheiro da tinta a óleo ficava forte demais. Ao dormir, não via a hora de acordar, para que eu pudesse voltar a pintar.”

Operando no limite da exaustão física, a artista trava uma batalha silenciosa e sem fim consigo própria. Persegue, convicta e determinada, o que acredita nunca ter conquistado.

“Eu busco algo solto, algo fluído em cores, com muita tinta. Quando termino um trabalho, fico ansiosa para começar o próximo, pois ainda não alcancei o que quero em pintura. Tenho muito a pesquisar, a trabalhar, e o meu tempo é curto.”

Às portas dos 80 anos, Beatriz Balen Susin (Caxias do Sul, RS, 1946) elegeu como base de sua mais recente obra, justamente, um retângulo de dimensões humanas que se configura, se não na prática, mas na fantasia, como uma porta. Ela já havia explorado o formato acentuado e vertical em alguns poucos retratos, em pinturas que representam figuras perfiladas, ou em séries como Sobre-viventes (2005) e Demasiado humano (2008), caracterizadas pelo aspecto modular. Não havia, porém, identificado a potência simbólica da porta. A associação veio no período pandêmico, quando, cumprindo o isolamento social e tendo esgotado as telas do ateliê, pôs-se a pintar as portas da sua casa. Projetando uma conexão com o mundo externo, que não podia acessar, elegeu a temática da natureza: vales, árvores, caminhos em meio à mata.

Durante muito tempo, para ela, a prática da pintura de paisagem não era mais do que um exercício, uma possibilidade de “soltar a mão”. Foram anos para que a artista, reconhecida pelas composições de viés narrativo e centradas na figura humana, considerasse se lançar, com convicção, a esse gênero. Isso ocorreu, sobretudo, a partir de 2019. Adotando grandes formatos e pautando-se em fotografias feitas em viagens pelo interior do Rio Grande do Sul, ela encontrou um novo e singular veio, que lhe franqueou os gestos largos, transbordantes, bem como o mergulho na cor, como em nenhum outro momento de sua trajetória. Com intuição e sensibilidade, sem demora percebeu que a fotografia era, nesse processo, mero artifício, pois as paisagens estavam internalizadas, explodindo em formas e cores que lhe exigiam, inclusive, nova postura corporal.

“Perante a tela, eu me sinto como um espadachim em um duelo. Mudei, inclusive, a empunhadura, a maneira de pegar os pincéis. Antes, eu os segurava com os dedos; agora, é com a mão inteira. É como se eu colocasse todo meu corpo no movimento, na tinta.”

É prazeroso observar Beatriz diante de seu ofício, concentrada e plena, dando vazão a si própria. No diálogo com os materiais e com o fazer que a permite renascer em cada obra, há júbilo, assim como angústia. Espécie de desafio autoimposto, a artista tenta conciliar o domínio técnico e o que reconhece como marcas estilísticas pessoais com aquilo que é novo e inexplorado.

Nesse sentido, uma vez mais, a porta. Como estrutura espacial, uma porta pode assumir funções de barreira mecânica, térmica, visual e acústica, bem como abrir, conectar ou fechar espaços. Simbolicamente, uma porta cerrada sugere privacidade e introspecção, enquanto uma porta aberta descortina outros mundos, estabelecendo acesso entre o visível e o oculto.

Tal como o “olho mágico” das portas domésticas, Beatriz lembra que, na infância, havia um ovo de Páscoa que trazia, acoplado à embalagem, um pequeno dispositivo óptico, através do qual era possível vislumbrar o desenho de uma paisagem bucólica. Simples e fabuloso, aquele orifício funcionava como um umbral, proporcionando à menina o contato com outras esferas.

“A minha brincadeira era imaginar que eu morava dentro do ovo. E aquilo era tão fascinante que me levou para o interior de um formigueiro, de uma romã, de uma laranja, de uma pedra… Rapidamente compreendi que, pela imaginação, eu iria aonde desejasse. E a arte, em grande medida, faz isso: ela me permite criar o mundo que eu quiser.”

Na negociação constante entre real e ficção, o essencial, para Beatriz, é sentir a “alma das coisas”. Carregado de romantismo, o propósito parece deslocado no tempo, infenso à lógica de aparências da contemporaneidade. Ela não se importa e aceita. Sabe que essa é a sua verdade.

Há alguns meses, em passagem pelo sul de Florianópolis, a artista viveu uma experiência transformadora. De repente, percebeu-se dentro da Mata Atlântica, engolfada pelos verdes, pelos sons e pelos odores da floresta. Buscando reter a sensação de pertencimento, realizou um registro fotográfico amplo, que serviu de disparador às 20 telas que nos oferece, alinhadas e luminosas como um portal.

Se, à esquerda da composição, é possível identificar algum vestígio humano, esse sucumbe, à medida que os olhos prescrutam os planos. Habitadas por uma profusão de formas vegetais, em uma paleta vívida e exuberante, as pinturas parecem exibir, progressivamente, um adensamento da experiência, como se fosse possível tatear a superfície das plantas, acompanhar o transporte da seiva, sentir a absorção das raízes, pulsar no ritmo da mata.

Um segundo eixo explicita, pelas cores, a apreensão fenomenológica do tempo. Entre amarelos e laranjas, vermelhos e lilases, azuis e verdes, as horas passam, os dias correm e as estações avançam, dando ao corpo-árvore a floração, a plenitude, a canícula, o fenecimento e, uma vez mais, a aurora. No ciclo da vida que sempre se renova, atravessar o portal sinaliza o caráter iniciático que toda nova fase engendra. E que Beatriz Balen Susin, tal semente na terra, faz brotar.

Paula Ramos
Porto Alegre, outubro de 2025

 

Bea Balen Susin

BEA BALEN SUSIN (Caxias do Sul/RS, 1946) é artista visual há 60 anos, também com formação em Música. Trabalha com desenho, pintura, gravura. Foi professora de Artes na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e no Ateliê Livre da mesma instituição. Trabalhou com cenários e figurinos para companhias de dança, ilustrou mais de 20 livros e é autora da peça teatral Passantes e Pensantes.

Em 1994, ganhou bolsa de estudos em Pintura do Instituto Vêneto (IVRAL), de Padova, Itália. Em 2011, foi agraciada pelo FUMPROARTE de Porto Alegre com a edição do livro Transfigurações do Real, sobre sua obra e trajetória. Realizou exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior.

Em 1991 e em 1992, foi indicada ao Prêmio Pintura pela Associação Chico Lisboa e, em 2012, ao VI Prêmio Açorianos de Artes Plásticas, também em Pintura.

Vive e trabalha em Porto Alegre.

Quando o corpo toca a terra

Bea Balen Susin

Abertura

1° de novembro de 2025

11h às 14h

Visitação

3 a 29 de novembro de 2025

segunda a sexta, das 10h às 18h

sábado, das 10h às 13h30

Ocre Galeria

Av. Polônia, 495 – São Geraldo

Porto Alegre/RS

www.ocregaleria.com.br