Segundo olhar
É uma tarde de sábado no ateliê de Claudia Flores. Vazias, as ruas do bairro industrial parecem ainda mais largas.
Enquanto prepara o café, Cláudia relembra os anos seguintes ao início de sua trajetória como artista na década de 90. Conta que se dedicou intensamente ao ensino e também se tornou mãe, permanecendo afastada da rotina de ateliê, até o reencontro com seu trabalho, anos mais tarde:
“Quando me vi de volta à arte, fiquei surpresa ao me lembrar do enorme prazer que sinto em trabalhar!”
Passamos a seu espaço de trabalho tomado por telas, algumas em andamento, outras, concluídas e voltadas contra a parede. Projetos, esboços e testes se espalham pelas mesinhas; notas e fotografias aparecem coladas por toda a parte no pequeno mundo salpicado por tinta.
O lugar pulsa com a presença sólida e abundante dos materiais de trabalho e de seus cheiros.
“A relação física com a matéria é extremamente prazerosa para mim” – diz a artista, manipulando um dos bibelôs que toma como modelo em suas pinturas.
Claudia é movida por um sentimento de encantamento pela arte. Não me recordo de ter testemunhado tamanha gratidão pela simples possibilidade de criar.
Ela conta que, ao se reaproximar do mundo profissional da arte, sentiu-se, “frente a um cenário completamente diferente”, marcado por uma profusão de informações e discursos em torno da produção.
“Parece que havia caído ali, vinda de outro mundo”.
Enquanto Claudia segue se atualizando das mudanças no meio das artes, penso que seu trabalho não requer qualquer ajuste, por mínimo que seja. Suas pinturas trazem um silêncio benigno à sala de exposição, reacendendo nossa percepção saturada de palavras.
Isso faz-me pensar em um traço comum aos que se tornaram artistas na passagem do século e que é perceptível na relação de Claudia com a arte.
Visceralidade?
Olho para as telas de Claudia, mas não sinto repercutir nelas a intensidade de auto exposição que essa palavra carrega. Não encontro ênfase ou grito.
Uma atmosfera úmida transborda os bastidores e vem nos sequestrar, aqui fora, para a paisagem dissolvida, onde uma e outra silhuetas se esvaziam.
Num segundo olhar, tudo muda e a profundidade se recolhe: escorridos de tinta e veladuras verticais desafiam o infinito, assentando-o como um adesivo na vidraça.
Olho e não olho.
Sinto mais do que olho, atendendo ao convite destas pinturas.
Mudo de ideia e diria que sim, que há vísceras no humor velado pela sombra e há luz na opacidade rompida pelo fogo de suas pinturas. A atmosfera onírica não é imune aos estilhaços da vida contemporânea: por toda a parte, infiltram-se sinais de um amanhã que se descola do presente, dissipando lembranças e abandonando figuras pelo caminho.
Nesse cenário que atrai e repele, a presença humana cede lugar ao afeto de um bibelô, de um brinquedo ou de uma estampa lavada.
Silêncio no mundo de Claudia.
Há um rastro de beleza deixado em nossa passagem.
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Maria Helena Bernardes
artista visual
Agosto de 2025
https://www.instagram.com/reel/DOEdP79jlSd/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==
“Mas a terra natal é menos uma extensão que uma matéria; é um granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água ou uma luz. É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nossa imaginação adquire sua exata substância; é a ela que nosso sonho dá sua cor fundamental. Sonhando perto do rio, consagrei minha imaginação à água, à água verde e clara, à água que enverdece os prados. Não posso sentar perto de um riacho sem cair num devaneio profundo, sem rever a minha ventura… Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes.”
Gaston Bachelard
O caminho é o lugar
2025, vídeo digital, 2’
• Roteiro e edição: Martin Albert Haag
• Captação de imagens: Claudia Flores e Rosana Pozzobon
• Texto: Gaston Bachelard, A água e os sonhos (Martins Fontes, 1998, p. 9)
A Ocre Galeria apresenta O caminho é o lugar, exposição individual da artista Claudia Flores. A mostra reúne pinturas que dão continuidade à investigação poética da artista.
Nascida em Santa Maria (1964) e residente em Porto Alegre, Claudia trabalha com pintura, desenho e colagem, abordando temas como memória, sonho e fantasia. Suas paisagens, situadas entre o figurativo e o abstrato, evocam um universo onírico, por vezes habitado por figuras humanas, animais, barcos, bibelôs e edificações, construídas a partir de gestos deliberados e acasos do processo pictórico.
Como descreve Maria Helena Bernardes no texto crítico preparado para a exposição: “O ateliê pulsa com a presença sólida e abundante dos materiais de trabalho e seus cheiros. Uma atmosfera úmida transborda os bastidores e vem nos sequestrar, aqui fora, para a paisagem dissolvida, onde uma e outra silhueta se esvaziam. Num segundo olhar, tudo muda e a profundidade se recolhe: escorridos de tinta e veladuras verticais desafiam o infinito, assentando-o como um adesivo na vidraça.”
Claudia apresenta aproximadamente 20 obras — pinturas acrílicas sobre tela e papel — produzidas em 2024 e 2025, com presença do desenho e da colagem, reafirmando a profusão de seu repertório e de sua poética, iniciados no final dos anos oitenta, após sua formação no Instituto de Artes da UFRGS. Sua produção recente, intensificada na prática diária de ateliê, num convívio imersivo com tintas, experimentos, leituras e propostas, faz Bernardes também apontar: “Claudia é movida por um sentimento de encantamento pela arte. Não me recordo de ter testemunhado tamanha gratidão, por parte de outra artista, pela simples possibilidade de criar.”
A mostra organiza um olhar sobre a obra atual de Claudia Flores, convidando-nos a trilhar o percurso da artista até suas particulares e infindas paisagens.
Serviço
O caminho é o lugar — Claudia Flores
Visitação: 25 de agosto a 20 de setembro de 2025
Seg. a sex., das 10h às 18h
Sáb., das 10h às 13h30