O PRENÚNCIO DA ASCENSÃO

O prenúncio da ascensão: ação ou efeito de ascender, de se mover de baixo para cima; elevação. Constantemente os sinais e os símbolos exteriores, visíveis e tangíveis, da ascensão só aparecem quando tudo o que se enlevou já se encontra em movimento de declínio. Objetos que já foram outros objetos se transmudam em novos objetos. Coisas que são ainda excertos de outras coisas entram em metamorfose para tornarem-se novos símbolos — alegorias diabolicamente destruídas e magistralmente reconstruídas em uma experimentação poética necessariamente contingente. Mas eis que o novo símbolo (o símbolo reconstruído), conforma um artefato original e passa, então, a designar também algo imensurável — uma iminência composta por fragmentos e dividida em pedaços que, mesmo reunidos em um novo arranjo formal, parecem ainda revelar algo de suas antigas funcionalidades, de suas potencialidades interrompidas  e de suas projeções concluídas e irrealizadas. Nenhum dos fragmentos, sozinho — e nem sequer todos juntos —, poderá ser novo símbolo se, à sua conjunção, não sobreviver o sentido de todo que faz com que as partes sejam integrantes, ou melhor, integradas, nesse todo: poética da vinculação. Quando se pensa ou se age simbolicamente, o pensamento e a ação não se detém nem se demoram na parcialidade — saltam para a totalidade que, só ela, é divisível. Nenhum símbolo poderá ser coisa, nem sequer suas frações, se, na verdade, não fizer parte de um todo. Não há contradição aparente: o artista navega pelas águas turvas da forma em busca de portos seguros, de ilhas de significado que iluminem a vastidão do desconhecido que nele habita. A obra, frágil embarcação cujos mastros foram confeccionados a partir de pedaços de outros pedaços, carrega em seu bojo o fardo da expressão, o anseio último de traduzir o indizível. Tudo está à (e em) deriva. As partes estão à deriva, o todo está em deriva. Mas, nada fica estático; o todo e as partes se movimentam, deslocam-se em espiral ascendente, e se transformam sem sair do lugar — transmudando, simbolicamente, aquilo o que está à sua volta. Esse afluxo está acontecendo a todo momento — ocorreu ontem,  está sucedendo nesse instante e seguirá intercorrendo amanhã —, ele sobrevém em vários níveis; e abre, simultaneamente, distintas dimensões (consistentes e não consistentes) em trajetórias concorrentes e contraditórias. As partes interconectam-se, interpenetram-se, fundem-se e confundem-se misteriosamente. E o mistério que elas eventualmente revelam é arrebatador — é um mistério que nos arrouba e que tem o condão de nos arrancar momentaneamente de nós mesmos: distinção de iminência. Sem embargo evidente — e então deslocados, pelo enlevo, para uma fração não necessariamente factual do real — percebemos que nos encontramos abertos à constatação, agora já sem surpresa, de que os mastros feitos de fragmentos que sustentavam as velas da embarcação improvisada (como obra) pelo artista, subitamente, desvelam-se para nós como totens, obeliscos, colunas sem fim que sinalizam a rara intersecção do passado e do porvir em um labirinto de espelhos — onde cada reflexão nos confronta com a multiplicidade do ser que somos, com a inconstância de nossas verdades arraigadas, com a fragilidade das linguagens que não dominamos e com a aparente incoerência das formas que nos ultrapassam. Ao contrário do que poderia figurar à primeira vista, nada aqui está, efetivamente, fixo; se olharmos de novo, veremos as formas se entrelaçarem uma vez mais; perceberemos os símbolos se recombinarem e se separarem novamente, criando um mosaico de significados que vai seguir em constante transformação. E é nesse momento, exatamente, que o horizonte desvelado pela ascensão ou por seu prenúncio se torna, pois, o instante incontornável onde o espaço e o tempo se encontram no enlace simbólico que os torna indistintos — ou, antes, distintos, mas inseparáveis. Os movimentos são sempre os mesmos e, quase que invariavelmente, não perceptíveis: na busca incessante pelo fundamento, o artista se confronta com a finitude da forma e, principalmente, com o limite da linguagem em sua incapacidade de capturar a totalidade da experiência. Mas é justamente nesta finitude, neste limite, que ele recupera — potencialmente — a beleza da poesia na sua inclinação de sugerir, de evocar, de despertar a imaginação. A obra (suas partes, seus conjuntos) não intenta dizer algo, mas sim insinuar o indizível, abrir caminhos para a intuição e para a experiência indireta com a sinceridade da criação — e a poesia que ela contém, no todo e nas partes, é um convite para a exploração, para a descoberta e para a transformação. Com este arco simbólico, o que o artista procura, sem embargo, é elevar-se, atingir o infinito, alcançar a verdade do sensível que reside além das palavras, das formas, dos gestos, dos sons e das imagens. A obra é, sempre foi, a única bússola possível; mas ela aponta para cima nesse labirinto onde nos perdemos em busca daquilo o que (temos que acreditar) poderá nos ajudar a encontrar o sentido último de nossa jornada como seres humanos.  O paradoxo, se é que ele existe, é que o indizível, o inefável enigma  dos enigmas que a obra nos deixa vislumbrar, versa principalmente sobre o mistério da sensibilidade e da natureza — uma e outra abertas uma para a outra, mas também para a vida e para a morte. Talvez trate-se, por fim e sobretudo, do mistério mesmo da morte — não  da morte que é termino de vida, mas sim sua continuidade reversível; não do decesso que interrompe nosso ciclo e nos joga para fora da existência (ou da identidade), mas do ascenso que conforma o momento culminante de suspensão, nosso destino e resolução final: metamorfose. Depondo sobre a sensibilidade e a natureza, sobre a vida e a morte, sobre o ontem e o hoje, sobre o mundano e o sagrado, sobre o todo e suas partes, a obra de arte aceita o declínio e, a partir dele, produz enlevo para nos alvitrar, poeticamente, sobre a intimidade do simbólico e sobre a complementaridade da forma:  o prenúncio da ascensão.

ANDRÉ SEVERO

A ALMA DOS OBJETOS

O valor de um artista não se mede apenas pelo tempo de sua trajetória, seja ela acadêmica, formal ou informal. Muitas vezes, reside no olhar atento que transforma objetos esquecidos, descartados ou isolados do seu contexto original — seja pelo desgaste natural, envelhecimento ou substituição por novas propostas de design — em algo com nova função, beleza e continuidade. Como amigo de longa data de Carlos Trevi, tenho observado sua sensibilidade única para compreender a alma dessas peças. Ele recria sua função, dando- lhes sobrevida e significado, revelando sua essência poética e estética. A obra de Trevi nasce do entendimento profundo do que os objetos representam: fragmentos de histórias, memórias e possibilidades. Como a Vênus de Botticelli, símbolo do renascimento e da criação, suas colunas de cristal e outros elementos, muitas vezes fragmentados, emergem da força do belo, da busca eterna pelo divino, da vontade de transcendência que habita a condição humana. Sua arte é marcada por um ar de mistério e pelo desejo de alcançar uma nova luz, usando objetos que perderam partes de seus suportes ou funcionalidades, transformando-os em monumentos contemporâneos que convidam à reflexão. Partindo de coleções incompletas, de pequenos fragmentos compartilhados por seus pares — copos, taças, cálices, garrafas, pequenos bibelôs, tampas de cristal, pés e pernas de móveis antigos — Trevi reúne esses elementos em assemblagens ornamentais e desafiadoras à mente. Seus objetos não mais inibem nossa ação ou funcionalidade; ao contrário, tornam-se pequenos totens, medidores físicos e metafóricos de até onde podemos elevar — ou ascender — nosso olhar para o mundo. Em 2015, em Porto Alegre, há exatamente uma década, o paulista Carlos chegou em seus “barcos” artísticos da Holandesa Olinda. Aqui, no “Arquipélago” de Veríssimo, firmou-se, com âncoras e faróis, e começou a edificar, além da sua própria arquitetura de memória, seu papel na cena local, especialmente à frente do Santander Cultural, integrando-se e fortalecendo nosso contexto artístico com exposições marcantes. Sempre atento às questões que envolvem a produção cultural, Trevi agora se expõe, pela primeira vez, aos holofotes do público. E, como padrinhos de sua primeira individual na cidade, dois Andrés — artistas e amigos

há 30 anos — vêm acolher esse percurso, junto ao talento de tantos outros amigos artistas, curadores e produtores culturais gaúchos e brasileiros, que reconhecem sua importância, especialmente por sua atuação à frente do hoje Farol Santander, em Porto Alegre e São Paulo. Se as obras expostas na Galeria Ocre sugerem um mundo em miniatura, sua casa é um universo à parte: uma verdadeira obra de arte em constante transformação, onde cada objeto e elemento carregam histórias próprias, enriquecendo a grande morada de imaginação e fascínio que é a Casa Trevi. Vivendo nesse vasto templo de sentidos, sair do acolhimento desses objetos preciosos para a neutralidade do cubo branco exige coragem. E, nesse momento de transição, os mastros, colunas, torres e faróis de Trevi assumem seu papel mais essencial: sustentáculos que apoiam e orientam o olhar — ferramentas que, com firmeza, gentileza e atenção, convidam o público a atravessar essa ponte entre o íntimo universo de suas criações e o espaço de reflexão, sempre sedento por amor à arte.

ANDRÉ VENZON

Carlos Trevi tem primeira exposição individual na Ocre Galeria, em Porto Alegre (RS)

● A mostra Ascensão, de 19 de julho (sábado) a 16 de agosto (sábado), apresenta mais de 30 obras do artista e gestor cultural, que propõe nova leitura para fragmentos do cotidiano em suas esculturas;

● Os trabalhos produzidos por Carlos Trevi revelam a transformação de objetos outrora descartados, que agora se convertem em novas estruturas poéticas;

● Com curadoria de André Severo e texto crítico de André Venzon, a exposição revela uma travessia simbólica entre matéria e memória.

Porto Alegre, julho de 2025 – A Ocre Galeria recebe, a partir de 19 de julho (sábado), a exposição Ascensão, primeira grande mostra individual de Carlos Trevi na capital gaúcha. Com curadoria de André Severo e texto crítico de André Venzon, a exposição apresenta um conjunto com mais de 30 esculturas verticais, das mais variadas formas e tamanhos, que ressignificam fragmentos esquecidos, como: taças, cristais, pés de móveis, bibelôs e ornamentos, passando a formarem estruturas que evocam memória, beleza e transcendência.

No dia 22 de julho (terça-feira), Trevi, Severo e Venzon participaram de uma conversa aberta ao público, realizada também na Ocre Galeria, às 18h.

As obras são compostas por elementos que tiveram outras funções e que, reorganizados em colunas e totens, ganham novos significados. Ao reunir pedaços de madeira, ferro, fios, tecidos e outros materiais, o artista constrói estruturas que evocam uma arqueologia afetiva, onde cada fragmento guarda o silêncio do que já foi e a potência do que pode vir a ser. “Sempre me interessei pelo que os objetos ainda têm a dizer, mesmo quando parecem esquecidos. Gosto de pensar que cada peça carrega uma memória silenciosa, e meu papel como artista é oferecer a ela uma nova chance de expressão”, explica Carlos Trevi. Resultado de uma pesquisa desenvolvida ao longo dos últimos anos, a mostra Ascensão investiga os sentidos simbólicos da matéria e sua capacidade de transformação com o passar do tempo. Nas esculturas, Trevi não apenas reformula os objetos: ele ativa suas memórias, criando uma linguagem que transita entre o sensível e o espiritual. “São frágeis embarcações cujos mastros foram confeccionados a partir de pedaços de outros pedaços. O todo e as partes se movimentam, deslocam-se em espiral ascendente e se transformam sem sair do lugar”, observa o curador André Severo, que acompanha a trajetória do artista e propõe uma leitura da mostra como metáfora da metamorfose. Com forte dimensão poética, as obras sugerem um deslocamento entre o visível e o invisível, o passado e o porvir. O público é convidado a perceber não apenas a forma final, mas também o processo simbólico de transformação presente em cada detalhe. Para André Venzon, que acompanha de perto a produção de Trevi, as obras do artista “nascem do entendimento profundo do que os objetos representam: fragmentos de histórias, memórias e possibilidades”. Ao reunir peças quebradas ou esquecidas em colunas verticais, o artista constrói, segundo Venzon, “monumentos contemporâneos” que desafiam o tempo e nos convidam à contemplação. Entre o universo particular do artista e o espaço da galeria, as esculturas estabelecem um campo sensível, onde os fragmentos são reorganizados como pistas simbólicas da continuidade, da impermanência e da reconstrução. Ascensão propõe, assim, uma experiência que articula arte, memória e matéria, iluminando o invisível e revelando, poeticamente, que toda criação é também um renascimento.

Sobre Carlos Trevi

Natural de São Paulo, graduado em Administração atua como gestor e curador à frente de importantes instituições culturais, além da dedicação permanente às atividades práticas no âmbito das artes visuais. Desde 2015 mantém residência e ateliê em Porto Alegre, onde desenvolve seus trabalhos na forma de objetos e assemblages. Sua poética visual apresenta reflexões sobre as relações estabelecidas entre memória, identidade e patrimônio, tendo como ponto de partida as experiências vivenciadas com pessoas e lugares. Em 2014 realiza sua primeira exposição individual “Carlos Trevi – Territórios da memória”, na galeria Sobrado Escritório de Arte em Olinda (PE), com curadoria de Raul Córdula. Tem obras no acervo do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, no Museu do Estado de Pernambuco e em coleções particulares.

Sobre André Severo

Nascido em Porto Alegre (1974), é artista, curador e gestor cultural. Mestre em Poéticas Visuais (UFRGS), fundou o projeto Areal em 2000, com foco em arte contemporânea fora dos grandes centros urbanos. Criou projetos como Lomba Alta, uma residência artística, e Dois Vazios, que une cinema e artes plásticas. Realizou mais de dez filmes e instalações audiovisuais e publicou livros como Consciência errante e Soma. Foi curador da 30ª Bienal de São Paulo e da representação brasileira na 55ª Bienal de Veneza. Recebeu prêmios como o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea (2014) e o V Prêmio Açorianos de Artes Plásticas.

Sobre André Venzon

Vive e trabalha na sua casa-ateliê-galeria, no 4° Distrito da cidade. É artista visual, curador e gestor cultural. Mestre em Poéticas Visuais no PPGAV/IA-UFRGS, especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona/Espanha e graduado em Artes Visuais pelo IA-UFRGS. Dedica-se à pesquisa dos tapumes na paisagem urbana, de elemento arquitetônico a significante de operações poéticas. Igualmente tem mostrado os resultados de seus estudos e criações, em exposições, congressos, feiras, seminários, palestras e curadorias, perfazendo uma intensa atividade acadêmica em articulação com uma atuação efetiva no sistema da arte. Destaque para a curadoria da exposição “Nem Eu, Nem Tu: Nós – A Obra de Karin Lambrecht e o olhar do colecionador”, dentro do projeto RS Contemporâneo – Pensamentos Curatoriais, no Santander Cultural (2017). Diante de sua forma de perceber a arte como atributo social foi presidente da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, Conselheiro Estadual de Cultura, membro do Colegiado Nacional de Artes Visuais e diretor do MACRS por duas gestões. É coordenador da Galeria de Arte da Fundação ECARTA, desde 2018, e atual diretor artístico do Instituto Cultural Laje de Pedra, Canela/RS.

Sobre Ocre Galeria

A Ocre Galeria é um espaço dedicado à arte contemporânea, comprometido com a valorização e a difusão da produção artística brasileira. Fundada em maio de 2022, a galeria promove artistas de trajetória consolidada e emergentes, criando diálogos entre diferentes gerações e linguagens artísticas.

Serviço

Exposição Ascensão | Carlos Trevi

Endereço: Ocre Galeria – Av. Polônia, 495 – Porto Alegre/RS

Abertura: 19 de julho de 2025 (sábado), das 11h às 14h

Visitação: de 21 de julho a 16 de agosto de 2025

Segunda a sexta, das 10h às 18h | Sábados, das 10h às 13h30

Entrada Gratuita

** Conversa com o artista Carlos Trevi, André Severo e André Venzon, dia 22 de julho (terça-feira), às 18h, na Ocre Galeria, aberta ao público.

Informações à imprensa MARRA COMUNICAÇÃO – http://marracomunica.com.br

Paulo Marra: marracomunica@gmail.com – 11 99255-3149

Vinícius Oliveira: vinicius@paulomarra.com.br – 11 95946-2063

Priscila Previato: priscila@paulomarra.com.br – 11 99152-1525