Entre Águas

Porto Alegre, quinta-feira, 2 de maio de 2024: pelas janelas frontais da Ocre Galeria, assistíamos, apreensivos, à chuva inclemente. Nas ruas, a água se avolumava, enquanto o céu chumbado sinalizava que, tão cedo, não daria trégua. À medida que posicionávamos as delicadas esculturas de Eloisa Tregnago, recebíamos as notícias e imagens, cada vez mais dramáticas, das aluviões que desciam pelos rios Jacuí, Caí e Taquari, e que logo desaguariam no Guaíba. Entre beleza e horror, encantamento e estupor, ia-se configurando o inimaginável. Na manhã seguinte, o imperioso: Lágrima, terceira exposição individual da artista, programada para abrir no dia 4, seria transferida.

Eloisa Tregnago não gosta de ser chamada de artista; prefere a palavra escultora. Também não gosta de dar título às obras, tampouco às exposições. As anteriores, nos distantes 1993 e 1999, tiveram o mesmo nome: Eloisa Tregnago: Esculturas. Mas, neste ano de 2024, ela considerou oportuno batizar a mostra com a mesma palavra que designa uma de suas mais simbólicas peças. Nela, uma cabeça feminina robusta, de nariz acentuado, boca pequena e olhar distante e resignado, traz uma mancha no rosto: um filete escuro, largo e solitário, vertendo em meio ao mármore branco, pontualmente sob a representação do olho esquerdo.

A obra – como a quase totalidade das peças em exibição na Ocre – foi produzida entre 2013 e 2018. Desde então, Eloisa nunca mais encarou o mármore. Nos anos seguintes, tal como enxurrada, sobrevieram-lhe perdas, dores, silêncios, abismos, desafios pessoais que a fizeram desacreditar de si própria. Passada a torrente e sentindo-se à deriva, recolheu-se mais e mais, alimentando um ceticismo em relação ao meio artístico e ao próprio trabalho. Muitas foram as vezes em que, percorrendo o lindo ateliê que dividiu com Xico Stockinger, durante mais de 20 anos, refez a torturante e afincada pergunta: “Para que tudo isso?”.

A escultora conheceu Xico Stockinger em 1985, em um curso de modelagem que ele e Vasco Prado ministravam no Margs. Ela vinha de Bento Gonçalves, depois de uma graduação em Letras e de uma formação, aos sábados, com Bez Batti, para quem o desenho era o “amansa-burro”, o mais elementar e necessário de todos os exercícios. “Eu adorava desenhar e só queria continuar desenhando, mas me deparei com aquele curso do Vasco e do Xico e me inscrevi”. Sorrindo timidamente, completa: “E eles poderiam falar sobre qualquer coisa, dar um curso de culinária, o que fosse, que eu ia fazer”. Dedicada e talentosa, em pouco tempo estava trabalhando com ambos: com Vasco, aprendeu a modelar, fazer formas e cunhar peças; com Xico, a entalhar. Para quem jamais imaginou tornar-se escultora, o encontro com a pedra foi o mais difícil, mas também o mais estimulante, revelando-lhe virtudes de força, resistência e concentração que ela não supunha ter. “O Xico me desafiava, me estimulava, e isso me faz uma falta imensa… Ele dizia: ‘Se tu és macho, faz’. E eu tinha que provar que eu era ‘macho’. Então, pegava a ponteira, a marreta, a talhadeira e ia batendo, do começo ao fim, e depois lixava e lixava, só usando os recursos manuais”.

A primeira peça foi uma cabeça, seguida de muitas outras. Na exposição Lágrima, elas também predominam. Das 15 obras, pelo menos 11 são cabeças ou insinuações de bustos. Há algo marcante nessas peças, tanto na execução quanto na exibição: a frontalidade. “Quando esculpo uma face, a própria altura em que coloco a pedra faz com que o olhar da figura coincida com o meu. E isso é fundamental, pois é como se fosse um ser que eu vou revelando, conhecendo e, ao mesmo tempo, criando”. Eloisa não nega: em todas elas, há um quê de autorretrato. Não propriamente nos traços – embora eles também sejam reconhecíveis –, mas nos aspectos de introspecção, devaneio, complacência, perplexidade, melancolia, resignação ou, ainda, nas situações evocadas. Face a face com o mármore, no processo de encontrar a si própria, Eloisa confia na pedra: “Ela vai se insinuando, e eu vou pensando… Aproveito essa linha, ou não? Sigo por esse caminho, ou não? Eu nunca parto de um desenho, de uma ideia, de algo que vou impor à pedra. É ela que se revela”.

No diálogo que estabelece com a rígida matéria, o sólido virgem é como a folha em branco: convidativo, mas também terrificante. Saber observá-lo, sobretudo quando é irregular, pode sugerir inícios; se eles acolhem o ofício da escultora, vem o regozijo: “É ali que acontece o namoro. O relacionamento ocorre enquanto interajo com o ser que está surgindo”, confidencia, voz calma e pausada. Foi assim, entalhando um bloco de mármore branco do Espírito Santo e derramando água para iluminar-lhe a superfície, que Eloisa Tregnago encontrou uma lágrima densa e pungente. Ela sabia que lhe pertencia, mas sabia também que, como tudo na vida, um dia haveria de estancar.

Paula Ramos

Crítica e historiadora da arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS

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